Já foi tempo em que o estereótipo do macho lusitano era um farfalhudo bigode. Quase exigência da máscula condição. Até um sinal da profunda ruralidade que se confundia com portugalidade. A estética é tão volátil como as andanças do tempo. Houve tempo em que o bigode teve o seu templo, que o sexo masculino visitava com veneração. Hoje, os sinais da estética deixaram ao bigode um lugar anacrónico. Entre os mais novos (uma extensa faixa etária, desde que as pilosidades faciais começam a aparecer nas faces adolescentes, até, digamos que por conveniência pessoal, aos quarenta) um bigode é raridade.
Os modismos são uma tirania terrível. Convenções saídas do nada, com a espontaneidade de uma estética que emerge à superfície sem se perceber como. A certa altura, o modismo contagiou-se. Uma espécie de "passa a palavra" sobre os novos ventos da estética, sem que haja um literal "passa a palavra". São os olhos que espreitam nas imediações e se apercebem dos modismos. Uns aderem sem hesitações, entusiasmados com o último grito da estética dominante. Nem que seja para se sentirem parte da tribo que desenha as tendências que subiram ao altar da moda. Outros hesitam. Não ficam convencidos com o novo modismo, resistem até mais tarde sucumbirem perante os sinais estéticos que imperam. E depois sobram os resistentes, ou aqueles que teimam em andar para o lado contrário da maré. Dissidentes da estética que vingou.
A forma como apresentamos o rosto encerra importantes sinais identificativos, um estado de alma inteiro? Há quem pense que sim. Que é necessário mudar de aspecto quando uma página da vida é dobrada, ou quando do interior grita alto um apelo para exteriorizar diferença. Há quem seja conservador. Resista aos modismos e aparente sempre o mesmo – até quando as fases da vida se sucedem e semeiam vestígios de coisas diferentes. Contudo, as tendências que vingam deixam uma marca indelével. Hoje, por exemplo, os bigodes são olhados de soslaio, deixados no lugar da estética risível.
O recurso à memória é a prova. Entre as pessoas com que nos relacionamos e aquelas que surgem na praça pública escasseiam os bigodes. Estenda-se o exercício a uma vertente inter-temporal: ver fotografias de há vinte ou trinta anos e olhar para a mesma cara retratada hoje; entre os muitos bigodes de então e o quase deserto de hoje. O modismo que triunfou, o modismo assassino de bigodes, é inter-geracional. Os mais novos não usam bigode, nunca o usaram. Os mais velhos, que outrora foram orgulhosos hospedeiros de espaventosa bigodaça, renderam-se à estética que vingou: ou raparam os bigodes, ou prolongaram-nos para hirsuta ou rala barba. A estética do momento ditou o funeral momentâneo dos bigodes.
A idiossincrasia de um povo é feita de muitos aspectos. No século passado, quando houve muita emigração lusitana para países europeus mais ricos, ficou registado o estereótipo do macho lusitano dotado de imponente bigode. Agora libertámo-nos desse estereótipo. E se há legado que podemos ter deixado – um legado que não prima pelo orgulho, pois é motivo de chacota, um meio de desconsideração da portugalidade – é o do bigode. Nas entrelinhas de algum imaginário feminino, porventura a imagem do macho viril que as nórdicas buscam em época estival. Por causa desse imaginário, diz-se, desaguam nos fundilhos da Europa em demanda dos prazeres que os pouco másculos concidadãos lhes consentem. Tenho para mim que isto é uma lengalenga para consumo doméstico dos machos lusitanos: um auto-convencimento das façanhas que só eles conseguem alcançar, como se houvesse uma divina distribuição de dotes pelos nativos. Era então que ostentavam bigode como o sinal de identificação que saciava o cio nórdico.
Só que agora já não envergamos bigode. Porventura num retrocesso do tempo, o famoso apresentador de um noticiário televisivo na Suécia regressou de férias com novo visual. Onde antes estava uma face limpa de pilosidades aparecia agora um surpreendente bigode. Foram tantos os protestos dos espectadores contra o novo aspecto do jornalista que, no noticiário seguinte (no próprio dia), o homem já apareceu despojado da penugem infra-nasal. Explicou-se depois: que a consorte lhe pediu para experimentar a diferença, que ela o projectou de bigode e suspeitou que ficava com melhor aspecto. A ditadura das audiências desfez em nada os apetites da senhora. Mais alto falou a intrusão dos espectadores na privacidade do jornalista com jeito para cata-vento.
Os bigodes andam em baixa na bolsa de valores da estética. E a portugalidade, essa, mergulhada numa tremenda crise de identidade. Já nem sequer o maior estereótipo da portugalidade consegue vingar lá fora. Nem em nórdicas terras onde as donzelas achavam, por entre recordações de férias agitadas, que um bigode era sinal da (supostamente) incomparável masculinidade lusa.
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