14.1.09

Por onde andou o dinheiro?


Não é como os economistas. Não interessa a "falta de liquidez", que tantas vezes sai das suas bocas para explicar o detonador desta crise. Muito menos importa mergulhar nas suas complexamente técnicas explicações da origem do dinheiro, de como é cunhado e de como se submete ao fenómeno da "velocidade monetária" – ou de quantas vezes a mesma nota passa de mão em mão, desmultiplicando-se em milhentas e milhentas de operações.


Em rigor: "por onde andou o dinheiro" é uma interrogação que pega no diapasão da "velocidade monetária". Mas só no diapasão, escapando às muito sinuosas curvas que o fenómeno tece nas mentes bestuntas dos economistas. Eis as interrogações que importam: por onde andou o dinheiro que chega às minhas mãos? Que compras foram feitas por essas notas que forram o interior da minha carteira? E se fosse possível seguir a pegada mercantil das notas, só para saciar uma inútil curiosidade, saber se essas são notas limpas.


Mais interrogações: o que faríamos, caso aquela cartografia fosse discernível, se uma particular nota tresandasse à imundície assim classificada pelos parâmetros da individual moralidade do seu detentor? Repudiaríamos essa nota, mesmo que ela fosse uma nota gorda? E se fosse uma nota que chegou às nossas mãos tendo antes liquidado, eu lá sei, uma operação plástica supérflua, um bilhete de tourada, um árbitro comprado por dirigentes desportivos, um concerto de Luís Represas, uma consulta de magia negra – rejeitaríamos essa nota se a sua procedência incendiasse a pessoal indignação? Como se, de repente, ao saber por que caminhos transviados ela andara, a nota ganhasse um odor pestilento, contaminada pela peçonha só destilada por uma osga nojenta.


Possivelmente, o oásis dos que não se cansam de denunciar a afeição do ser humano pelas trivialidades materiais que o dinheiro pode comprar. A repulsa imediata por aquelas notas manchadas pela sua origem. Desatávamos a deitar dinheiro ao lixo. Ah, os optimistas antropológicos por fim encantados com a espécie humana, por fim desligada das peias do materialismo, do sórdido materialismo que a corrompe, à humanidade. Ou não tanto optimismo, se passássemos a enxamear páginas de anúncios nos jornais oferecendo à troca as notas colerizadas por outras, imaculadas. Seria negócio ruinoso, decerto: pois neste desacerto da oferta e da procura, quem entendesse desfazer-se das notas embebidas em apostemas teria um preço a pagar, o preço ditado por aqueles que aparecessem com notas não lavadas na infâmia, enfim, as notas com um preço acima do valor facial.


Se aos historiadores da economia fosse dada a palavra, diriam que a origem da moeda está na confiança – a fidúcia, para remeter os "aprendentes" (incursão no "pedagoguês" corrente) para a expressão "moeda fiduciária". Então como agora, a confiança entronizada esteio nesta imaginada troca de notas caucionada pelas diferentes moralidades dos indivíduos. Pois este mercado não se compadecia com as manobras mentirosas de quem se aprestasse a trocar notas emporcalhadas para uns por notas de registo imaculado. Nem atestados com o selo de uma entidade despojada de desconfiança chegariam para limpar os falazes compromissos de alvura monetária quando, no fim de contas, só os seus detentores saberiam se o trajecto de outrora assegurava um registo limpo àquelas notas. Muitos podiam trocar algo por mais do mesmo, cair no engodo de um mercado ocupado por oportunista gente, da gente treinada para contornar a lhaneza de hábitos. Seriam, todas as notas, perfunctórios altares da apetecida alvura, apenas uma coreografia de engodos. De uma forma ou de outra, todos somos, aos olhos dos demais, gente domada pelo apetite de censuráveis hábitos. Dos hábitos que se pagam em dinheiro, logo aí, dinheiro contaminado.


Ainda haveria quem se dedicasse a tarefa mais singular: seguir o trajecto das notas que a si desaguassem. Por onde passaram essas notas, por que locais, distantes e desconhecidos, recantos escondidos nas profundezas de um mapa, ou grandes urbes invejadas por quem as nunca visitou. Haveriam de reproduzir mentalmente viagens aos sítios por onde as notas tivessem passado de mão para mão. Essas notas seriam postais porém não ilustrados – mas postais que entreteciam a imaginação febril dos argonautas a tactear as rugosidades de cada nota. Como se nesse táctil percurso deambulassem pelas ruas e avenidas e paisagens, ora bucólicas ora vulgares, viajadas pela nota.


Não interessa o cadastro das notas – atalham caminho os enamorados pelo pragmatismo. A realidade só assim é viável.


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