29.1.09

“Obama, presidente global”, Cavaco que cuide da sua coutada


Era um restaurante e uma televisão que passava noticiários sem som. No rodapé: "Obama, o primeiro presidente global". O som ausente na televisão impediu o significado de "presidente global". Aposto: mais uma espantosa sondagem em que se pergunta, e por telefone, se as pessoas concordam com isto ou com aquilo. Para depois se deitar mão a extrapolações e concluir generalizações. As palavras assim amontoadas circularam uma e outra vez pelo rodapé da televisão. Talvez para hipnotizar os espectadores – os que já estavam convencidos da aterragem de um messias e os cépticos, enfim de espinha dobrada pela ideia repetida à exaustão.


Todos os presidentes de repúblicas e reis de monarquias invadidos por tremenda angústia. Um dia acordavam e estavam depostos. O mundo só com um governante, no êxtase "global" pela sua perícia. Mas uma angústia doce: todos os governantes depostos cientes da inclinação irrecusável diante da encarnação de deus. Viriam anunciar a resignação aos súbditos. Sem dramas, nem ar grave, um discurso aligeirado pelos rostos sorridentes, o alívio de entregarem as vultuosas tarefas nos braços da messiânica personagem entronizada "presidente global" por uma muito democrática sondagem.


Diriam as palavras mais belas. As que selavam a sua deposição. Nem vagas de fundo a reclamar a suas excelências que repensassem a decisão. Todos, suseranos e súbditos, entenderiam: não havia fuga a nada, demissão alguma; um colectivo arfar de humilde resignação perante os dotes deificados pela "voz global". A primeira vez que Cavaco aparecia na televisão sem a pose grave de estadista, sem aquela rigidez cadavérica.


Ai daqueles dominados por mau feitio que viessem fazer muitas interrogações. O que interessa se a amostra da sondagem era representativa do universo humano? O que interessa que um "presidente global" passe por cima do significado da democracia, das eleições, da representatividade? Perguntas embrulhadas em adversas maquinações, só para impedir a "razão global". Inúteis, incómodas perguntas. Hoje é malquisto quem duvidar da presciência do messias.


Por uma vez, uma vez que seja: advogado de defesa dos governantes da lusitana paróquia. E, por atalho, dos que participaram na eleição que colocou Cavaco no Palácio de Belém (o que não é o meu caso, que nesse dia tive um compromisso que me afastou das mesas de voto). Votámos para ter Cavaco ou para ele ceder o lugar, a meio do mandato, a uma messiânica personagem que arribasse algures? Outra interrogação inconveniente: houve lusitana gente a participar na sondagem que entronizou Obama "presidente global"? Quantos votaram em Cavaco e agora disseram que sim, que Obama é o "presidente global"?


Estou-me nas tintas para a canonização "global" de Obama. Desconfio da abundância de encómios, aves raras as que ousam divergir do consenso do momento. Quando surge o imperativo de saltarmos todos para a mesma barca, de remarmos todos para o mesmo lado: é isso que me mete espécie. Consensos, forjados ou devolvidos à espontaneidade, como parece ser o caso deste presidente dos Estados Unidos, também me incomodam. Os consensos são doentios. Liquidam a inteligência das pessoas. Amordaçam-nas no pensamento que se resume a uma via de sentido único. É como se, lá entrados, fôssemos rebanho apascentado por ditadores opinativos. Sem direito a parar, ou vem a turba restante esmagar as ovelhas tresmalhadas que se quedaram. A ninguém é dada a hipótese de inverter a marcha, ou está destinado à sufocação pela maré que cavalga na direcção oposta.


Por muito que o mundo avance e o que conhecemos seja equacionado nas suas bases, mexendo com os quadros mentais em que fomos instruídos, ainda há países. Oh, eu até gostava que um idealismo, lírico como os idealismos são, vencesse a maré dominante e os países acabassem, todos. Lugar, então, a um "presidente global", com eleições "globais", sem o espartilho das fronteiras que dividem artificialmente as terras. Enquanto formos viciados em países, podem anunciar milhentas sondagens "globais" (mesmo que insistam em não explicar por que são "globais") que os soberanos só são legítimos por força de eleições, sempre eleições nacionais. Até que este estado de coisas mude, o lirismo pertence aos que se comprazem por se sentirem devotos de um "presidente global" que, nesse estatuto, não passa de uma fantasia.


Sei que vivo agasalhado pelo relapso mau feitio. E com uns vestígios de metódico espírito de contradição. Se me for dado o direito de beijar a dissidência, posso daqui gritar as seguintes palavras sem ser lapidado? "Eu não acredito em messias algum."


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