1.1.09

O ardil do ano novo


É como sempre: despem-se as roupagens do ano velho, pisam-se os ainda frágeis ramos do ano nascente. A multidão olha para trás e esboça a contabilidade do ano que finda, no deve e haver que compulsa as exactidões da alma. Ensejo para projectar as mil e uma coisas para o ano a que se acaba de dar guarida. E festeja-se, muito, ao troarem os sinos que anunciam a meia-noite, o mágico momento que dobra a folha do calendário pela batuta do feérico fogo-de-artifício que estala as cores garridas no céu por momentos despojado da escuridão nocturna.


Pela exaltação colectiva, dir-se-ia que os anos enterrados com a pompa das festividades são anos que não deixam saudade. A multidão recebe o ano nascente com um optimismo medido pelo barómetro das celebrações, com a efusão a rivalizar com o champanhe que escorre pelos flutes. O ano nascente é sempre melhor, há-de ser sempre melhor, do que o ano já féretro. E quantas vezes esse optimismo tem o seu zénite nos minutos primeiros que acolhem o ano que acaba de entrar no calendário? Os dias seguintes acomodarão a costumeira panaceia, o turbilhão de acontecimentos a começar a desmentir a embriaguez luzidia da passagem de ano.


Mas pertence aos costumes. O povo, néscio, consagrou o adágio "ano novo, vida nova". Como se houvesse um sortilégio com a noite em que se mudam as águas ao tempo. O novo ano que irrompe pela força do relógio indesmentível fermenta as coisas diferentes daquelas que eram hábito no ano cessante. Como se fosse uma prestidigitação inane. O povo enfeitiçado pela fábula do calendário que deixa cair a sua derradeira folha, o calendário que perdeu utilidade esgotados os derradeiros dias que lhe pertenciam. As águas passadas. O ano nascente como exemplo da pedagogia dos sentidos. O calendário novo afixado na parede inspira a vontade para trazer as mudanças requeridas. Coisa diferente é saber, tempos depois, se as mudanças projectadas saíram do estirador mental.


Intendência que se repete, rotineira, de cada vez que o ano cansado se exangue nas forças sobrantes do trigésimo primeiro dia de Dezembro. As pessoas são apanhadas no ardil de um ano que cede a passagem ao ano que lhe sucede. Pois o ano nascente convoca o refrescamento, banhadas as pessoas nas águas balsâmicas do ano nascente. É sempre nesta altura que as pessoas se convencem que vão passar a fazer, ou passar a ser, o que de há muito prometem ser e que foram adiando. Faz sentido: da mesma maneira que lavam as águas já paradas do ano que se esvai, interiorizam a ideal ocasião para coincidir a mudança do calendário com a passagem de testemunho entre o eu de outrora e o eu tonificado pelo ano que transita do útero do tempo.


Porventura, é quando menos sentido faz congeminar tão nobres planos. A excitação do momento adormece o discernimento. A exultação pelo féretro de que a multidão se despede transtorna os sentidos. E os que estão ébrios conseguem prometer, aos outros e a si mesmos, um caudaloso rio de fantasias. Haverá, se tanto, um delírio perfumado pelas pétalas da fértil imaginação, sobredimensionada pelo fermento do regozijo colectivo. É de quem cai no engodo da transição dos calendários, da artificialidade do tempo encerrado nos compartimentos estanques por onde desfilam as convenções do tempo – os segundos que fecundam minutos, que crescem para horas acumuladas em dias, meses, num ano que se esgota e passa o testemunho ao ano pueril, numa interminável, maquinal estafeta do tempo.


Somos prisioneiros do tempo, em todas as suas formas. Dos relógios que marcam o compasso dos dias vulgares. Dos calendários onde anotamos compromissos, tarefas, planos fadados ao olvido por causa do seu malogro. Dos calendários que transitam para outros calendários, onde toda a mudança se congemina e toda a mudança é, trezentos e sessenta e cinco dias depois, metida nas calendas. A menos que memória enfraquecida esteja, contados os trezentos e sessenta e cinco dias desde a formulação de promessas interiores, somos arquitectos de planos vãos.


É como o fogo-de-artifício que ilumina religiosamente todas as passagens de ano: um encantatório fogo, mas apenas um fátuo fogo.


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