6.1.09

A neve fundente


A leveza dos flocos de neve tempera a paisagem gelada. Aos poucos, o manto branco toma conta da paisagem. Os campos deixam de ser verdes, tomados de assalto por uma avassaladora e, contudo calma, onda de alvura cavalgada pelo nevão que cai há horas. As pessoas convencionaram, nos seus parâmetros arbitrários, dar o nome de mau tempo e bom tempo consoante os humores da atmosfera. E como pode a serenidade de um nevão arrastar consigo o adverso qualificativo de mau tempo?


Os flocos de neve que pousam, uns atrás dos outros, levam o espírito para uma quietação singular. Talvez seja pela minha latina têmpera, talvez seja pela raridade da neve na cidade que me viu nascer; nas escassas vezes que fui espectador da neve na sua particular coreografia era como se fosse possível abstrair-me de tudo o resto, o mundo encerrado na sua pequenez diante da grandeza da neve a tombar diante dos olhos. A alvura que tingia tudo em redor era detergente para a alma, todos os males subitamente extintos, apoderados pelas moléstias que os deixavam, males, exangues.


O efeito novidade deixava os sentidos numa anestesia de horas. Era observador da suave dança dos flocos de neve na sua incessante queda. Precipitavam-se sobre o solo, na sua leveza. Ao início, o solo ainda molhado era o túmulo onde se derretiam os primeiros e ainda tímidos flocos. A persistência da neve haveria de começar a deixar as suas marcas. De mansinho, alguns flocos amontoavam-se num pedaço de relva que não resistira à temperatura gélida. O primeiro leito para um pedaço de brancura. Da brancura que, lentamente, ia tornando a paisagem em redor visível na alvura da neve empilhada.


O tempo parecia emudecido com os brandos flocos de neve em incessante precipitação. O latino encantado com o feérico nevão diante de si nem dava conta das horas na sua sucessão. Só o anoitecer, o súbito anoitecer, o remiu da letargia do tempo que parecia ter hibernado. Nessa altura, já só um manto branco acomodava a paisagem. Já não havia relva desnudada, então agasalhada por um véu esbranquiçado. Os ramos das árvores, vergados pelo peso da neve ali deitada. E os telhados das casas, numa mutação de tonalidades, perdiam a cor de tijolo pelas telhas apoderadas pela capa de neve que nelas foi repousar.


Só que nem toda a magia do mundo é eterna. Os dias seguintes teimaram numa glacial temperatura que conservou a tela dominada pela alvura da neve. Ao fim de algum tempo, já extinta a novidade, a magia desgastou-se no cansaço da paisagem contaminada pela neve persistente. E se ao primeiro contacto os sentidos encantados com o fantástico teatralizar da neve anestesiavam o corpo, então insensível à temperatura negativa que caucionava o nevão, agora que um frio árctico parecia penetrar até ao fundo dos ossos o efeito encantatório diluíra-se. O nevão já cansativo, a alvura em redor já apenas uma tela monocromática sem sal.


A confluência de sensações contraditórias não cessava. Os ventos mudaram, com o ponteiro da bússola a apontar noutra direcção. O frio glacial dava lugar a uma temperatura amena, que se insinuava no manto de neve e o corroía desde as entranhas. Era possível ver a escorrência de água a libertar-se das fendas que se iam abrindo nas capas de neve, entretanto deslaçadas entre si. A neve fundia mais depressa do que o ritmo com que se deitou na paisagem. Fundia-se por causa da insidiosa amenidade da atmosfera que se pôs. E, apesar de já notar alguma monotonia pelos dias em que a neve acamara a paisagem em redor, havia alguma melancolia pela extinção que a temperatura amena tinha decretado ao manto de neve.


Era com o cortejo das horas que os vestígios de neve se perdiam na languidez da água fria que escorria, aproveitando a inclinação das ruas. A paisagem retomava a sua originalidade, já desprendida do manto de neve que a ornamentou. No contraditório espectáculo do degelo havia uma tristeza, uma insólita mágoa. A mágoa das coisas que partem sem delas se retomar visitação. Aquela neve fundente, a alvura que se derretia na transparente água que lavava as ruas, era sinónimo de uma perda. Ou apenas a metáfora da existência.


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