(Declaração de interesses: este texto não é para ser contextualizado na enésima greve dos professores que ontem aconteceu. Nem é a uma colagem à ministra da educação – muito longe disso.)
Em dias que calhe em sorte uma greve – uma greve geral, ou uma greve que, por afectar um serviço público sensível, tem efeitos retumbantes – há três aspectos que me chamam a atenção: os números da adesão, tão diferentes para sindicatos e governo, ou de como a matemática se presta a manipulações; a insensibilidade social da greve, que faz falar mais alto os interesses particulares de um grupo em sacrifício da imensa maioria por ela afectada; e os piquetes de greve.
Em sectores onde a sindicalização é mais elevada, há casos impensáveis protagonizados pelos piquetes de greve. Casos em que os zelosos cães de guarda destacados para o piquete de greve não passam de arruaceiros. Intimidam as "ovelhas ranhosas" que tentam furar a greve e exercer o pessoal direito ao trabalho. Começam por tentar persuadir pela força da palavra. Por lá andará um delegado sindical amestrado, com a doutrina toda empinada e treinado para o convencimento dos trabalhadores. Caso haja teimosos que nem com a catedrática capacidade de argumentação do delegado sindical se deixam seduzir, sobra o derradeiro instrumento: a intimidação física, a coerção servida através da violência, sem esquecer os insultos fáceis a quem não é permitido o direito de dissidir.
Os sindicalistas e seus capatazes que assim se comportam sucumbem numa contradição de termos. Fora das greves, deificam o direito ao trabalho. Protestam de cada vez que uma empresa faz despedimentos colectivos, de cada vez que uma multinacional encerra instalações por ter decidido emigrar. Fazem o seu papel: defendem os interesses dos trabalhadores à beira do precipício do despedimento. Argumentam a razão firme do direito ao trabalho dos que estão quase a ficar sem ele. Não é para aqui chamado, nesta altura, saber se faz sentido olhar para as empresas como cabides de empregos – é tema que ficará para outra ocasião. Trago aqui este assunto apenas para denunciar a contradição de termos de sindicalistas e dos arruaceiros a que entregam os piquetes de greve: afinal os trabalhadores têm ou não direito a trabalhar? Ou só o perdem naqueles dias em que são decretadas greves?
Isto leva à peculiar concepção de liberdade que faz parte da cartilha dos sindicalistas treinados pelo PC. Deixa de existir liberdade pessoal quando um colectivo – o colectivo que toma decisões que são sempre em favor dos interesses dos trabalhadores, note-se – decide que a greve vai para a frente. O catecismo comunista tem este predicado: a vontade individual é uma insignificância diante dos desígnios determinados pelo colectivo, os desígnios que fazem avançar a causa. Aos trabalhadores só resta a opção de não irem trabalhar em dia de greve. Devem anular a sua vontade individual perante o imperativo da greve. Até para não serem eles próprios, trabalhadores, a contribuírem para o fracasso da greve. Dirão os sindicalistas bem treinados que um trabalhador que declina a greve está a dar um tiro no pé.
Por mais que queira perceber a lógica de acção dos sindicalistas, há isto que escapa à minha compreensão: quando o imperativo colectivo se sobrepõe à vontade de alguém ir trabalhar em dia de greve, a liberdade desta pessoa desaparece. Esse imperativo colectivo é uma ofensa a um direito divinizado pelos sindicatos. É intolerável por causa da coação exercida pelos piquetes de greve. Bastaria mencionar a coação psicológica, quando os diligentes sindicalistas se esforçam por levar de vencida a pedagogia do argumento. O rosário de argumentos é, em si, um atentado à liberdade dos que querem ir trabalhar. Quando chega ao ponto de fazerem soar as ameaças físicas, sobra a supressão da liberdade. Assim fica desmascarado o entendimento de liberdade – uma liberdade muito entre aspas – dos comunistas que fazem política através dos sindicatos.
Já vi imagens vivas do labor dos piquetes de greve, perante a complacência da polícia que anda por perto. Aprendi que os polícias estão instruídos para defenderem o direito à privação da liberdade exercido pelos piquetes de greve. Por uma vez, a parte mais fraca – os que querem ir trabalhar e não o podem fazer – é a parte sacrificada no altar do sindicalismo que não olha a meios.
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