Para os que andam esquecidos do significado, uma ajuda do dicionário: "preferência dada por alguém que tem poder a familiares ou amigos, independentemente do seu mérito pessoal; favoritismo".
Os poderosos de todos os lugares com poder semeiam sinecuras por familiares, amigos, conhecidos e demais gente a quem são devidos favores. Há quem se não ofenda com o favoritismo reinante. Os laços sanguíneos falam mais alto. A afectividade que só dispensamos aos amigos. O utilitarismo dos favores (e a memória que não se apaga; e a recusa da ingratidão). Tudo isto alimenta a corte de quem se assenhoreia do poder, a corte onde só tem lugar gente próxima do poderoso. A confiança é uma trave-mestra da boa governação (onde quer que seja, sem distinguir os níveis onde o poder é exercido). Só os que reúnem a confiança do mandante têm lugar reservado à sua mesa de poder. Às urtigas a competência, as capacidades, as habilitações para o cortejo de sinecuras.
Há quem considere a coisa mais natural do mundo que isto seja assim. Cultivam uma normalidade que tresanda a anormalidade. De tantas vezes se repetir a prática, ela cristaliza-se em uso social. O que era anomalia, de repente pertence à normalidade enraizada. Daí em diante, é a procissão de favores que sobe na sua espiral. E o contágio pelas piores razões: "se os outros fazem, por que não hei-de fazer igual?" Uma imensa clientela tece-se numa rede infindável, do topo da hierarquia até às bases mais anónimas. Todos devem favores a todos. E todos querem ter ainda mais gente na mão através da distribuição de benesses e lugares que cultivam a dependência e obrigam à eterna gratidão.
O sobrinho da cozinheira casada com o motorista do vereador. Acabou o curso e não lhe pode caber em desdita o patíbulo do desemprego, nem sequer o degredo do subemprego dos call centre. Se não há lugar disponível na câmara municipal, inventa-se um. O empecilho da lei, inventada por administrativistas que se entretêm a semear burocracias inúteis na administração pública, exige concurso público. Faz-se um à medida do sobrinho da cozinheira casada com o motorista do vereador. De preferência, o mais discreto possível, para só ter um concorrente – aquele que está fadado para triunfar no concurso. Quem orquestra estes concursos públicos é o cioso alfaiate da encomendada sinecura ao sobrinho da cozinheira casada com o motorista do vereador.
O rapaz, enfim, funcionário camarário. Não resiste aos encantos de uma rapariga da terra e, ao fim de breve namoro, estão de casório agendado. Para a boda, convites aos figurões do município que podem abrir outras portas. Até o presidente da autarquia, com quem o nubente nunca falou, irá apadrinhar a boda. Em plena festança, já desposada a moça, o sobrinho da cozinheira casada com o motorista do vereador apresenta a consorte ao edil, já prostrado na cadeira onde enfiou o seu ébrio estado. A consorte do rapaz, descontente com o emprego – muitas horas de trabalho, tarefas duras, patrões boçais no tratamento, salário exíguo, o cadafalso do desemprego a rondar todos os meses. E por que não aproveitar a coincidência do edil apadrinhar a boda para apadrinhar um emprego camarário à rapariga?
É uma teia que cresce, em crescimento exponencial. As cumplicidades fervem por todos os lados, com todos – os que dão ámen à distribuição de empregos e os que estendem a mão neste peditório – a tirarem partido. Dos últimos não carece justificação. Os primeiros reforçam o seu poder ao espalharem a rede de influências. A certa altura, não haverá família do lugarejo que não tenha sido agraciada com prebenda municipal. Passadeira desdobrada para perenes vitórias eleitorais. Que só não entram na perenidade porque alguém se lembrou de limitar a três os mandatos dos autarcas. Nem isto enfraquece o nepotismo. Os dinossauros tratam de deixar delfins. Como delfins que são, ai deles que ponham em causa os privilégios das clientelas habitadas a amesendar com o edil destronado pela regra que impede perpetuações no poder. As castas superiores são intocáveis.
Apanhamos com levas de governantes em assolapada paixão com a educação. Gestas de vanguardistas pedagogos a dar o seu melhor para que a instrução geral das novas gerações faça a diferença em relação à mediocridade congénita das anteriores. Esforços inúteis. As boas intenções da educação esbarram no enraizado nepotismo. Se o nepotismo está tão incrustado nos hábitos, é porque todos que dele beneficiam sabem que não vingavam caso o mérito fosse critério de selecção.
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