8.1.09

Areia para os olhos


Os brandos costumes, outra vez: foi detido um dirigente de um clube de futebol transmontano que disputa uma divisão inferior do respectivo campeonato distrital. Tentou comprar um árbitro por cento e cinquenta euros. Quanto às grandes batotas do futebol, nem com o auxílio da sonoplastia se lá chegou. O mais hilariante é ter ouvido, um dia destes, numa conversa à roda da mesa, um adepto da agremiação regional envolvida no escândalo da corrupção de arbitragem ter dito, sem corar, que entende que as coisas tenham que se passar desta maneira.


Às vezes não consigo sucumbir à tentação dos moralismos fáceis – e eu que acho abjecto qualquer tipo de moralismo. Neste caso, ao ver o ar natural com que o comensal de ocasião justificava os arranjinhos através de dinheiro podre que corre debaixo da mesa. Era este o raciocínio: por inúmeras vezes fora testemunha de falcatruas semelhantes quando várias empresas tentam triunfar num concurso aberto para determinada obra pública. Ora se isto se vulgarizou no meio empresarial, ainda por cima com a conivência de funcionários do Estado que deviam garantir imparcialidade, por que razão se condena a corrupção no futebol? Concluiu: pois o mundo em que vivemos é uma selva. Só os que atingem a destreza das tramóias é que soerguem o pescoço. Eu rematei a conclusão: soerguem o pescoço do pestilento pântano, onde se demora o resto do corpo.


Não estou a sugerir que se feche os olhos à pequena corrupção. Nem que se feche os olhos ao caso do dirigente transmontano por se tratar de quantia irrisória. O que acho risível é a encenação montada: já que há por aí tanta gente indignada pelo poder à parte dos grandes clubes de futebol, cala-se essa gente com a notícia, diligentemente segredada a jornalistas decerto mancomunados, de que um dirigente já foi apanhado no submundo da corrupção. Pensarão: não se fala mais do assunto; já foi apanhado um zé-ninguém e os profetas da desgraça ficam contentes com a razão do seu lado.


Quantas vezes não se faz justiça, a justiça que aparece nítida diante dos olhos e dos ouvidos, só porque certos procedimentos foram atropelados? Havia escutas, entretanto anuladas por uma sinuosidade processual qualquer. E assim um pormenor tem mais importância do que a substância. Já estou a supor o raciocínio do tal comensal: ainda bem que assim é – ou a versão adaptada do adágio "fazer justiça por linhas tortas". A expressão ajusta-se tão bem ao caso (com o desconto de não se estar a fazer justiça alguma). Que as linhas são tortas, tanto como os caminhos tortuosos que têm assegurado vitórias a eito, dessa mácula não se livram.


Há cerca de um ano, a comunicação social divulgou, com alarde, um caso de corrupção envolvendo um clube dos campeonatos distritais de Viseu. Diria tratar-se de uma precisão cirúrgica, a que permite saber da tentativa de comprar árbitros de futebol apenas entre a arraia-miúda dos dirigentes. Os tubarões são incapazes disso. E ai de quem sugerir o contrário, que logo o ónus da prova sobre si recai. Com a agravante da punição adicional por ofensa à honra e bom nome dos dirigentes enxovalhados. A certa altura, mercê das fantásticas resoluções da justiça encantada com os pedacinhos de processualismo, até as escutas telefónicas pertencem ao património da fantasia colectiva. O que foi dito nas conversas telefónicas espiolhadas afinal não foi dito – ou foi como se não tivesse sido dito.


Lamentavelmente para a gente envolvida nessas escutas, não se trata de uma auditiva alucinação colectiva. Por mais que tentem limpar a imagem e de acusados se façam vítimas, por mais que tenham obtido o cancelamento das escutas, não se livram das palavras que proferiram e que ficaram registadas. Essas escutas podem não ter utilidade para a justiça dos tribunais. Mas têm utilidade para que as pessoas que não julgam ninguém na barra dos tribunais profiram o seu juízo pessoal. Uns, porventura cegos pela preferência clubista, dirão que não vem mal ao mundo se os dirigentes desportivos andam por aí a comprar árbitros, tecendo as mais absurdas analogias com as infames cumplicidades entre políticos e grandes empresas. Mas há maior ofensa aos praticantes quando o seu esforço esbarra no escandaloso concubinato entre dirigentes e árbitros que se deixam seduzir?


Entretanto, haveremos de ter direito a episódicas e cirúrgicas descobertas de dirigentes arraia-miúda que tentaram comprar árbitros e foram descobertos pela tão eficiente polícia. O mais a que teremos direito é que se continue a atirar-nos areia para os olhos. No rescaldo, tudo como dantes.


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