21.1.09

E se fôssemos carrascos do que comemos?


Mote: "Penso que as pessoas que comem carne deviam passar pela experiência de matar o animal de que se alimentam, ainda que fosse apenas uma vez na vida", Chakall, Cozinha Divina – As receitas de um viajante apaixonado pela cultura, Alfragide, Oficina do Livro, 2007, p. 121.


Uma reacção espontânea perante esta frase: eis por que razão deixei de comer carne. É nisto que penso quando invoco uma forma diferente de objecção de consciência que me fez parar de ingerir carnes. Contudo, não demoro em incoerência: o cozinheiro incluiu animais, todos os animais, mesmo os peixes que não deixaram de pertencer à minha dieta.


Logo a seguir, o chefe de cozinha parte para a elaboração da sua ideia: é o que se impõe para ganharmos respeito pelos animais que permitem a nossa subsistência. Confesso que a mensagem se perdeu, nebulosa, na auto-negação do seu enunciado. Se tivéssemos que matar tudo aquilo que comemos, que respeito exibíamos pelas vítimas que viriam parar ao nosso prato? Tirar a vida a um ser vivo é, em alguma hipótese, um acto de respeito pela vítima de que somos algozes? Porventura Chakall aduz o respeito pela importância que esses animais têm por serem mantimento dos seres humanos. Nesse caso, a ideia fica a debater-se nas amarras de um profundo antropocentrismo.


Já lá vou à pessoal incoerência – a objecção de consciência apenas dirigida à carne, deixando os peixes à mercê dos arrastões que sulcam os mares com as suas redes de malha apertada. Antes disso: incomodam-me mais os vegetarianos militantes que pretendem impor a sua forma de ver o mundo aos demais. Tentando convencê-los que a opção de usar animais como matéria-prima alimentar é um atentado ao meio ambiente. Teimam em ser intrusos nas vidas alheias, espiolham hábitos, agitam consciências. Sempre com a pose de quem está três degraus acima dos demais, na posse de uma moralidade que tem tanto de cintilante como de deplorável. Não como carne, mas não me importa os que os demais comem. Seria incapaz, como alguns exagerados fundamentalistas fazem, de não amesendar com algum comensal que esteja a tragar um petisco feito com carne. Prefiro amesendar com carnívoros que com sacerdotes do irrecusável vegetarianismo.


Não estou a endossar a apreciação da pessoal incoerência para as calendas, mas agora quero olhar de perto para a ideia de Chakall. Quantas pessoas teriam coragem de tirar a vida a um animal que, depois de confeccionado, aterrava no prato? Uma das "tradições" (a palavra aparece grafada com intenção) populares é a matança do porco. Há quem faça disso arraial popular. Quem consiga tirar prazer ao ver o porco a relinchar de dor quando o facalhão o espeta até às profundezas das vísceras. Quem assista, deleitado, à torrente de sangue quente a escorrer das entranhas do bicho. Sem se incomodar por essa carne se acomodar no seu estômago depois de amanhado e esquartejado o cadáver do animal, antes de passar pelo espeto onde é assada no calor da fogueira alimentada pelas cinzas do carvão. Tirando os "matadores" profissionais, os que o fazem de forma maquinal, quantos os que se arrebatam com a matança do porco disponíveis para espetar a faca e tirar a vida ao animal?


Todas estas dúvidas não obedecem ao pragmatismo da vida contemporânea, é sabido. Não precisam de me lembrar que existe uma indústria que ultrapassa os constrangimentos da consciência caso tivéssemos, uma vez na vida que fosse, de acorrer à sugestão de Chakall. Há matadouros – e quantos se prestariam a trabalhar num matadouro? Há talhantes, mestres no tratamento das carnes, que recebem as carcaças e as desossam e separam em suculentos nacos mesmo a convidar os olhos e o apetite que passam pelo talho – e quantos se prestariam a trabalhar num talho?


Nisto, deixei de conseguir tratar-me como hipócrita. Não é moralidade alguma. É uma mensagem só para o interior de mim. Admito, é um entendimento bizarro da "ordem natural" das coisas. Podem invocar a natureza humana, que sempre fomos predadores de animais que, com variações de costumes consoante as culturas, vivem para morrer na nossa gastronomia. Bom proveito, e nada mais. A ideia de Chakall faz sentido – mas já não a explicação da ideia. Seremos carnívoros envergonhados, porque há outros que fazem o trabalho sujo para nos deliciarmos com os prazeres da carne.


Agora à incoerência que me assalta: e os peixes, não são (por assim dizer) animais de deus? Eu seria incapaz de os pescar, à linha ou por arrasto. Seria incapaz de ir para a faina para ser o algoz dos peixes entrados no porão, degolando-os no derradeiro acto que cerceia a vida. E, no entanto, os peixes continuam a pousar no meu prato. Esta é a minha bizarra teoria: os peixes não convivem com os humanos como os animais que nos dão carne a comer. Não é argumento, apenas pretexto. Até conseguir de vez combater esta incoerência pessoal que me mói.


Sem comentários: