Um único ponto de contacto com o texto de ontem, para aproveitar o conceito de heresia – tão caro às religiões. Faço a exportação do conceito para matérias mais seculares. Pois há certas ofensas que parecem cominar, nos ofendidos, danos semelhantes aos pastores de igrejas quando invocam a intolerável heresia de quem afronta imbeliscáveis dogmas.
A presidência checa da União Europeia encomendou uma escultura a David Cerny, artista plástico também checo. É um costume já enraizado: cada país, ao passar pela faustosa presidência da União Europeia, quer deixar a sua marca. Até na arte. A escultura encomendada a Cerny, entretanto já plantada em Bruxelas à porta do edifício do Conselho de Ministros, está a deixar muita gente em polvorosa. A começar pelo próprio governo checo, que se queixa da impostura do artista plástico.
Cerny apresentou uma amálgama de imagens que retratam sinais distintivos dos vinte e sete países da União. Alguns ficam mal no retrato: "Portugal coberto de suculentos nacos de carne com a forma das ex-colónias, a Bulgária transformada numa retrete turca, daquelas com um buraco no chão que obrigam a uma incómoda postura de cócoras, a Alemanha reduzida a um emaranhado de auto-estradas a lembrar uma cruz suástica, (...) a Suécia numa caixa de móveis Ikea, (…) a Dinamarca [construída] em Lego, (…) a Holanda [inundada] deixando de fora apenas minaretes de mesquitas, (…) a Grécia em fogo, (…) a Espanha [coberta] de betão (…), ou Polónia com um grupo de padres na postura dos soldados americanos de Iwo-Jima a plantar a bandeira da homossexualidade (…) [e] um buraco no lugar do eurocéptico Reino Unido". Entre a perplexidade de uns e as gargalhadas de outros, sobra o protesto diplomático da Bulgária, o país que se considera mais ultrajado pelo artista plástico.
Eis a ponte entre a heresia religiosa e a heresia transportada para fora das fraldas da teologia: tal como nas religiões, há vacas sagradas que não podem, não devem ser afrontadas. É o respeitinho que obriga a ajoelhar diante das divindades, como nos inclinamos respeitosamente diante da bandeira da pátria quase tão deificada como o deus que nos protege. Num caso como no outro, a muito cinzenta adulação termina com uma lição que devemos interiorizar: não se brinca com coisas sérias. Se reclamações forem feitas mercê do atropelo à liberdade de expressão, ensinam-nos de seguida que não, não há atropelo nenhum: é só uma excepção à liberdade de expressão. A lição maior é irmos ao dicionário aprender o significado de "eufemismo".
A escultura chama-se "Entropa". Porventura o artista quis aglutinar "entropia" e "Europa" numa palavra só. A Europa como sistema em desordem, a desordem afinal ilustrada pela amálgama de idiossincrasias nacionais que se agrupam na União. Não é desordem, contudo, é a maior riqueza da União: a sua tremenda diversidade cultural. Não interessam para aqui os pormenores que explicam a posição de "marido enganado" do governo checo. Cerny terá feito coisa diferente do que lhe foi encomendado, deixando em maus lençóis as autoridades da República Checa. E terá enganado toda a gente ao prometer consultar artistas amigos do outros vinte e seis países para saber como retratá-los, coisa que afinal não fez. São detalhes, uma insignificância ao pé do que está em causa: a imprudência de satirizar as idiossincrasias nacionais, fermentando ofensas em grau variável consoante a imagem do país tenha sido mais ou menos devastadora.
Quem é incapaz de fazer auto-sátira oferece de si uma imagem circunspecta, a falta de rins para rir com aquilo que é. Quando tantas vezes se proclama a imperfeição humana, chegam depois os protestos dos protectores das idiossincrasias nacionais expostas à ridicularia. Protestam contra a abertura de espírito de quem consegue parodiar as suas próprias imperfeições. A que nos leva a pose de virgens pudicas ofendidas com a imagem desconfortável com que somos retratados na escultura de Cerny? Ainda levamos muito a sério a nacionalidade, como se o tempo não evoluísse para uma modernidade que nos entra pelos olhos e grita, bem alto, a superação das nacionalidades. Em vez de andar meia Europa profundamente magoada com o escárnio vertido em "Entropa", devíamos todos rir, de orelha a orelha, com as misérias de uns e de outros. A começar pelas nossas próprias.
A escultura até trata com generosidade a portugalidade. Três nacos de carne, como se fossem o espólio que sobra da aventura da colonização. Podia ser pior o retrato – ou melhor, na minha maneira de ver. Podiam satirizar a boçalidade lusitana, a aérea distinção de uma terra onde só se faz turismo, o folclore minhoto com vozes esganiçadas das cantadeiras em negação do que é cantar, a congénita adoração pelo vinho (e logo desde a tenra idade), o tristonho fado cantado por estreitas vielas lisboetas, o mais que se possa imaginar. Nem que fosse para contrariar a aldrabona imagem oficial de um eldorado que só existe para alimentar o ego de governantes que medram na esquizofrenia do que são.
Essa é a grandeza suprema de um povo: saber rir daquilo que é.
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