23.1.09

Um pedaço de Açores aterrou na Praça de Espanha


Vacas, de carne e osso, a vaguear por verdes pastos que, por estranheza, estão semeados no meio da cidade. Pastos que nunca o foram, contudo pastos agora que por lá apareceram as reses. Pois aquilo era um anódino relvado a servir de separador do enxame de estradas asfaltadas que desaguam na Praça de Espanha e que dela seguem para todos os lugares. Mas vacas, na sua infinita paciência ao pastarem entre o bulício dos muitos e apressados automóveis que sulcam a praça.


Invenção de publicitários: tiraram da cartola o colorido cenário composto por vacas em pachorrenta ruminação das poluídas ervas mesmo no coração da grande cidade. Para promoverem a imagem dos Açores. Há agências que fazem as contas ao dinheiro enterrado numa publicidade e depois conseguem apurar o "retorno" desse investimento. Quantos turistas ganharão os Açores depois de desembarcados os fleumáticos bovinos? Os bovinos que nem atordoados ficam com a algazarra de carros a arrancar quando o semáforo passa a verde. Nem com os magotes de gente que se cruzam, portadores de recíproca indiferença, à saída da escadaria que leva ao metro. Quantos turistas enfim enfeitiçados pela criativa campanha? E quantos dos transeuntes, se derem conta que há vacas à solta no meio da Praça de Espanha, pelos Açores enamorados de tal arte que lá farão férias?


Os bravos defensores dos direitos dos animais, com cívica e activa militância em muitas causas, apanhados na cilada da desatenção. Não se ofendem com o atentando ao bem-estar de vaquinhas habituadas ao silêncio sepulcral dos pastos açorianos. Não se insurgem contra os danos psicológicos nas vacas exportadas desde as belas ilhas, se elas por lá estão habituadas ao bucolismo da paisagem, os campos onde o verde só se não perde no infinito porque na linha do horizonte se demoram as azuis águas do mar como pano de fundo. Nem protestam contra os abusos alimentares, os animais obrigados a farejar a relva onde repousaram os vestígios da atmosfera tão poluída, os tubos de escape dos loucos automóveis mesmo a bordejar os improvisados pastos. Nem os protectores da higiene e da saúde pública gritam a sua indignação pelo anacrónico cenário, as vacas a deporem fedorentos dejectos que tornam o odor dos tubos de escape mais respirável.


Deviam ouvir-se protestos inflamados das suas purificadas bocas. É que o cortejo de vacas a pastar a meio de uma agitada praça lisboeta encerra alguma obscenidade. Como se um pedaço do jardim zoológico – e não dos Açores – se tivesse mudado das redondezas para a Praça de Espanha. As reses ali expostas à curiosidade de quem discernisse a sua presença. Aquilo não é uma campanha publicitária, é um convite ao voyeurismo com vacas como vítimas. E não sei, também, se uma falsidade tremenda. Quem embarca num avião para açorianas férias não se desloca para apreciar os bovinos nas suas demoradas degustações de relva nos prados locais.


Se a moda pega, podemos ter perigosas campanhas publicitárias de promoção de certas zonas com potencial turístico. Lembro-me de Amesterdão, famosa pela libertinagem que ofende os bons costumes estabelecidos. Como se daria a mostrar a libertina Amesterdão na Praça de Espanha? Deito-me a adivinhar: as atracções acantonadas no meio da praça fariam parar o trânsito e a certa altura o trânsito ainda mais caótico e com os polícias distraídos a olharem de soslaio para as carnes semi-despidas que eram um convite à luxúria. As pessoas à saída do metro subitamente esqueceriam que tinha pressa em chegar a um qualquer destino, primeiro o passo retardado, depois detendo-se diante da exposição em carne viva.


Concedo que há vacas a pastar nos Açores, e que há quem faça postal típico disso. O que nisto acho insólito não são as vacas que de repente aterraram no meio da agitada praça de Espanha: insólito é que haja publicitários que acreditam que vai aumentar o número de turistas nos Açores depois desta campanha.


Inédito, e criativo, seria pôr as vacas a pastar ananases dos Açores.


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