19.1.09

Pesadelos


E se David Cerny continuasse "Entropia", a tornasse ainda mais labiríntica na quintessência da maior riqueza da União Europeia – a diversidade cultural? Daqui vai uma visão muito pessoal da idiossincrasia lusitana. À beira do fim.


Mulheres aldeãs de farfalhudo bigode – ou apenas um acidente das hormonas, traição que nelas levita alguma masculinidade indesejada. Militantemente viúvas, mesmo que a viuvez o seja apenas dos estreitos quadros mentais por onde caminham. Às que cultivam a genuína viuvez, aquelas que viram o consorte cedo partir para seu definitivo túmulo, uma inquietante fidelidade jurada na lápide do consorte. A cor dessa fidelidade ausente é o negro dos trajes que jamais irão despir. Mercê do espartilho das convenções sociais. Pois a tacanhez das alcoviteiras arremessaria a artilharia pesada da "censura social" se uma pobre alma enviuvada ousasse recuperar garridas cores para o vestuário.


Homens rudes, atarracados mas de corpo maciço, as mãos sempre tisnadas pela sujidade que nunca conseguem esbater. Ostentam, com orgulho, a proeminente unha do dedo mindinho. A unha assimétrica, que cresce para além do estalão médio das unhas que encabeçam os demais dedos. É vê-los, sem ser em pose distraída, escavacar o pavilhão auditivo com a ajuda da tenaz que lhes cresce no quinto dedo da mão que estiver a jeito. Culminam o desempenho com um cuidado exame da cera extraída, como se fossem cientistas em diligente observação da matéria da sua ciência.


Pais de família – que orgulhosamente ainda se auto-intitulam "chefes de família" – arrebanham a prole, a mulher e a sogra para o dominical piquenique na mata, logo que a primavera dá uns ares da sua graça. A custo, deixam o futebol da aldeia entregue aos seus amadores artistas, cumprindo com denodo a obrigação familiar. Não é em vão que seguem, só falsamente contristados, marcando a estrada com uma lenta marcha. Pelo dia fora, a promessa de um fartote de comezainas e a zurrapa do vinho tinto vertido em copos de plástico directamente do garrafão de palha. A meio da tarde, quando os vapores etílicos fizerem o sono aterrar, deitam-se ao colo da primeira sombra que quiser ser testemunha dos urros que sopram na cantilena que ressona. Não há-de haver algazarra que perturbe o sono pesado como um elefante. Ao crepúsculo, trazem a família a reboque da condução passada pelo filtro dos vapores etílicos. Nada a temer; gabam-se de maior destreza ao volante quando já empinaram uns "copos valentes".


Tendo hábito, que já se demora, de me exilar em casa ao domingo, não sei se uma insólita derivação de domingueiros piqueniques persiste. Gente que não tem o rasgo de descobrir melhor local para os prazenteiros piqueniques que não seja o relvado que bordeja auto-estradas sem portagem. Conceda-se: a paisagem é bucólica, com o cortejo de automóveis em alta velocidade, um cortejo que sempre é policromático, o som constante e estridente dos rodados a massacrar o asfalto da via, a pureza do ar que inspiram com deleite, as carradas de monóxido de carbono servidas de acompanhamento dos pitéus tradicionais.


Gente mesquinha que se lamenta das desgraças nacionais, para as quais são os últimos a contribuir pois o mal é sempre alheio. A mesma gente que traga uma infusão de orgulho pessoal, sob a capa do pátrio orgulho, quando concidadãos triunfam em conceituadas provas desportivas. Fazem seus os sucessos que só pertencem aos esforços dos atletas. Fazem sua a bravura que sabem ser ausente. A indigência tinge o discernimento; e tão depressa vangloriam feitos como oferecem o cadafalso aos atletas em pátria representação que fracassaram as nutridas expectativas.


Um povo lamechas, derrotado, macambúzio (e o fado é sua expressão notória), preguiçoso, mestre-de-obras em expedientes vários, invejoso. Pequenino. Saudosista, que a inépcia do presente é compensada pelos feitos de outrora legados aos livros da História. Martirizado pelo eterno adiamento de si mesmo, a ceifa do sebastianismo é o seu algoz fatal. A viril gente de camisolas de alças, chinelo de dedo, sanduíche de courato e cerveja quente na mão, enquanto canta, do alto da voz estridulosa e desafinada, o refrão boçal de um cantor pimba no meio da praia que é um enxame de gente.


Pode estar outra portugalidade encerrada em centros comerciais pós-modernos. Podem os demógrafos insistir no êxodo dos campos para as grandes cidades, a sangria que semeia desertificação no interior e sobrepovoa o litoral. Nem assim esta portugalidade se desata do ruralismo salazarento. Pois até modernaços exilados na grande urbe, demiurgos da ruralidade incessante.



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