Acusa-se: há "fascismo social" quando gente bem instalada nas elites urbanas fustiga os pacóvios vindos da província que, a pulso ou mercê de encavalitamentos proporcionados por conhecimentos bem colocados, desembarcaram na grande urbe e singraram. Quem acusa essas elites citadinas de "fascismo social" repudia a sobranceria com que são tratados os saloios convertidos às mordomias (e ao poder) da grande cidade. Pelo caminho, denunciam a inveja recalcada das elites – pois vituperar os aldeãos que açambarcaram o seu lugar no estrelato da cidade expõe a inveja de quem vê a sua coutada tomada de assalto por arrivistas boçais.
Não é por ter nascido numa grande cidade que passo ao lado dos protestos contra a inventada categoria do "fascismo social". Nunca fiz parte, nem anseio integrar, as pretensas elites acusadas do "fascismo social". Pouco me preocupa que quem nasceu na província mostre tanta urgência em aterrar, e com sucesso, nas grandes cidades. O que me inquieta é outra manifestação de apatetado moralismo pela voz dos que inventaram e se insurgem contra o "fascismo social". Sobretudo porque alguns deles, manipulando os cordelinhos da opinião publicada, parecem adormecidos diante de episódios que se encaixam no protótipo do "fascismo social".
O frio polar dos últimos dias terá enregelado a atenção destes feitores da moralidade que o rebanho deve prosseguir. Como o frio polar agrava os riscos dos desprotegidos, nos últimos dias a comunicação social prestou atenção ao que estava a ser feito nas grandes cidades para proteger os sem-abrigo. Nas televisões, repetiram-se directos das tendas da Cruz Vermelha que asseguravam uma bebida quente e refúgio temporário aos que dormem ao relento. Directos acompanhando organizações não governamentais que percorreram os recantos das grandes cidades a tentar convencer os sem-abrigo a irem para refúgios. Por mais que uma vez, os repórteres de rua entrevistaram sem-abrigo. Invariavelmente, eram tratados pelo nome próprio antecedido do artigo definido "o" ou "a" – "o José", "a Maria".
Por um momento, tento perceber a lógica do "fascismo social" só para indagar se este tratamento deveras familiar e informal não se acomoda nos critérios que os oráculos da moralidade acertada estabeleceram. Eu acho que aquele artigo definido a preceder o nome dos sem-abrigo encerra ainda mais "fascismo social" do que a altivez com que são mimoseados os poderosos de hoje vindos da aldeia.
A diferença está nisto: os mesmos jornalistas tratam com menos informalidade qualquer anónimo que se cruze à frente dos seus microfones. Já se viu um repórter de rua usar "o" ou "a" antes do nome da pessoa entrevistada? Já para não mencionar o respeitinho obrigatório perante os doutores e engenheiros – e se for gente instalada na política, mais alto grita o respeitinho. Ainda hoje, instantes antes de uma jornalista entrevistar dois sem-abrigo e dispensar o tratamento muito familiar, tinha passado os olhos por um canal onde uma secretária de Estado era respeitosamente tratada como "senhora secretária de Estado".
Estou-me nas tintas para os salamaleques que nos distinguem no tratamento pessoal, sobretudo quando se convenciona que esse tratamento exige respeitabilidade. Somos prisioneiros de um formalismo excessivo quando falamos uns com os outros. Leva tempo até que o degelo do formalismo tenha lugar. O peso exagerado das instituições é a outra faceta do formalismo exigível no tratamento pessoal – principalmente quando as pessoas se relacionam investidas numa determinada qualidade institucional. Por isso é que fomos surpreendidos com aquele famoso "porreiro, pá" entre um primeiro-ministro e o presidente da Comissão Europeia.
É irónico que ande por aí tanta pedagogia da igualdade e logo a seguir os mais desprotegidos recebam um tratamento tão familiar. Só faltava tratar os sem-abrigo por tu. O que diriam, caso não estivessem distraídos, os que por aí andam a vigiar casos de "fascismo social" diante da liberdade de tratamento dedicada aos sem-abrigo? É por serem desfavorecidos que se prestam a um tratamento que é quase "tu-cá-tu-lá"? Os penhores da igualdade forjada, os mesmos que não resistem a ensaiar um e mais outro acto de engenharia social para todos sermos melhores de acordo com os seus critérios, podiam inventar nova regra: os jornalistas teriam que utilizar "senhor" e "senhora" antes do nome dos sem-abrigo. Ou todos teríamos direito a tratar o primeiro-ministro por "pá".
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