Coisa nunca dantes vista, pois nunca quis ser funcionário público. Outro preconceito, se calhar, servido no lastro das ideias. O liberal, que preconiza o emagrecimento do Estado em todas as suas formas e expressões – já para não mencionar os acessos utópicos do libertário, que sonha com a extinção do Estado –, o liberal daria um tiro no pé da sua coerência se aceitasse trabalhar para o Estado que renega. Essa é a razão maior para o pessoal desalinhamento com o funcionalismo público.
Este maravilhoso governo inventou outra alcavala só ao alcance dos funcionários públicos, desta vez para os libertar do fardo insuportável da crise. Vai ser aberta uma linha de crédito (quando?) para os funcionários públicos em dificuldades diante da dantesca crise poderem pagar os empréstimos à habitação. A generosidade tem o seu lado macabro, pois a linha de crédito estende-se até à subvenção das despesas de funeral de familiares próximos do enlutado funcionário público.
A contextualização que se impõe: este é ano de eleições. Derreava-se de cansaço quem quisesse denunciar o eleitoralismo que vai aterrar (se já não aterrou) nos tempos próximos. Vai ser o tempo da embriaguez das promessas, da vida que vai melhorar para toda a gente – e, quem o faz partindo do palco da governação, não está a admitir a inépcia por não ter conseguido chegar ao objectivo durante o mandato que está a terminar? No caso dos amadores que mandam em nós, parece que se enamoraram tanto pelo eleitoralismo que os colocou na cadeira do poder que nunca se conseguiram desprender dele durante a governação. Vai ser uma orgia de promessas e de planos solenemente anunciados. Para então termos a convicção de que durante a campanha eleitoral esta é uma terra surpreendentemente rica, tamanha a prodigalidade de recursos que se exigiriam para saciar as muitas promessas servidas em bandeja solene.
Esta linha de crédito em proveito dos funcionários públicos inscreve-se no registo do eleitoralismo barato, daquele tipo de eleitoralismo encomendado a um qualquer director comercial de uma empresa de vão de escada. Assim como assim, temos metade da gente a trabalhar para o Estado. Há que adoçar a boca deste eleitorado potencial com um apetitoso rebuçado, mais a mais quando a época é de míngua de mantimentos. Este alívio será aplaudido pelos beneficiários – e aplaudido de pé. Como adorava ter uma varinha mágica para descobrir em quantos votos a favor do actual timoneiro da nação se converterá a medida.
Entre a anestesia geral a que somos conduzidos pela profissional agência de comunicação ao serviço do governo, falta protestar algumas interrogações: e os outros, os que não são funcionários públicos, por que razão são excluídos da intempestiva liberalidade? Será uma fatalidade ter o estatuto de "não funcionário público"? É irónico que tamanha desigualdade venha de alguém que se apresenta de cândida face como sacerdote supremo do "valor" da "igualdade". Para agravar a intolerável desigualdade, os que são excluídos do alívio financeiro pagam-no através dos seus impostos. Perdem por duas vezes: marginalizados do esquema, contribuem para o seu financiamento.
O mal é que não há sindicatos que protestem, com voz audível, os interesses de todos estes marginalizados. Comemos por tabela e comemos calados. Uma multidão silenciosa, presa à inércia das multidões compostas por indivíduos que sempre sacodem o ónus do protesto para o vizinho do lado. Os governantes cor-de-rosa não são ingénuos nem andam a dormir para o que mais lhes interessa (a reeleição): calculam a apatia dos excluídos e promovem os apoios aos que não podem ser excluídos, para silenciar os activos sindicatos que os amparam através do engodo da generosidade publicitada.
É por isto que tive um súbito acesso de inveja dos funcionários públicos. Não quer dizer que fosse a correr para a fila dos candidatos de mão estendida na sopa dos pobres, que as finanças pessoais não justificam a pedinchice. Gostava de saber o seguinte: se, por um acaso, tropeçasse num acidente de percurso e as pessoais finanças se ressentissem, não me estava destinada a recusa caso quisesse engrossar o rol dos pedintes à mesa do generoso e ricamente farto Estado. Que, ao que consta, somos todos nós. A recusa apenas por não ter o estatuto, já de si privilegiado, de funcionário público.
Por onde anda a igualdade, essa vaca sagrada das esquerdas?
Sem comentários:
Enviar um comentário