Esta crise que cavalga nas suas tempestuosas ondas, trazendo um mar de fundo cada vez mais encapelado, é pedagógica – insistem os optimistas de serviço. Sugerem que vamos aprender com a crise. Reconhecemos os erros de outrora, os erros que desaguaram nesta crise sem precedentes, para mudarmos comportamentos. Há outra tábua de salvação: a crise fermenta oportunidades ímpares, o que todavia deixa no ar uma suspeição de oportunismo que não andará muito longe da crucificada ganância.
Eu digo que esta crise serve para ficarmos catedráticos do comportamento de uma casta muito peculiar: políticos. Reduzindo ainda mais o espectro: governantes. Já a crise (hoje esta palavra vai ser exaurida …) tinha aterrado em todos os lugares e por aqui nidificava um agradável oásis. A crise era para os outros, tão incompetentes que não se tinham sabido proteger do estertor da crise. Era como se de uma versão renovada de Viriato se tratasse, uns séculos mais tarde teimando na resistência contra a ocupação do invasor – os romanos de outrora cedendo o lugar à crise que ameaçava, já dantesca.
O tempo – e não passou muito – virou a realidade do avesso, contra os desejos dos mestres da propaganda. Um azar tremendo: em vésperas de eleições as crises não deviam ungir governos de tanta competência. Dir-se-ia: a crise é uma batota, um sucedâneo de concorrência desleal que vitima governantes tão luminosos. É criminoso que governantes desta igualha sucumbam nas urnas porque a crise enganou os eleitores e estes castigam os governantes, como se eles fossem culpados pela crise que estendeu os seus tentáculos a todo o mundo.
Exigia-se mudança de retórica. Enfim, a crise não tinha sido injusta connosco. Imperativos de igualdade: se tinha aterrado em todos os lugares, por que haveríamos dela ser marginalizados? Afinal, a crise tinha entrado cá, mesmo sem ter sido convidada. Eis a esquizofrénica crise. Que confusão que deve ter percorrido as cabeças do cidadão comum, o cidadão que nada percebe de economia e que vai no engodo da distorcida mensagem política. De repente, deixámos de ser o oásis por decreto e engrossámos o lodaçal da estagnação, com as estatísticas desactualizadas a uma velocidade vertiginosa: menor crescimento, ao início ainda escassamente positivo, depois negativo e depressa ainda mais negativo; a produção a cair a pique, porque as pessoas foram forçadas a contrair o consumo; as exportações em forte queda; e a conjugação destes efeitos a confluir no fantasma do desemprego que assola a vida de mais e mais gente, com todos a olharmos para o lado para ver quem é o próximo a ir para as filas do instituto de emprego (que, sinais do tempo, devia ser rebaptizado: instituto de desemprego).
Se não é através do optimismo desarmante dos que confiam que a crise há-de ter um rescaldo bom, onde está o efeito pedagógico? De uma certa maneira, no lado psicológico da crise. Há quem reitere que as crises só o são porque se agrava a espiral de efeitos psicológicos adversos. Não concordo com a ideia. As crises têm causas reais, como é o caso da actual. Essas causas têm consequências, uma das quais é o clima negativo, a confiança a bater no fundo e a levantar a visibilidade da psicologia de braço dado com a economia. Os diligentes governantes, por fim convencidos que a crise nos acolheu no seu regaço, andam por aí a fazer o papel de choramingas, a confissão mais admirável de impotência de gente que governa que me é dado lembrar.
O ministro das finanças (que azar para a carreira ter-lhe calhado em sorte ter sido ministro logo em conjuntura tão desfavorável…) ensinava, numa reunião de militantes do partido da rosa lá para os Algarves: não há GPS que consiga dizer por onde deve ir a economia diante dos efeitos avassaladores e incertos da crise. Acabou a choramingar-se desta maneira: só nos resta a orientação pelas estrelas, mas as nuvens são tão densas que nem as estrelas conseguimos ver. Foi pena que não tivesse concluído o raciocínio como a coerência exigia: encerrávamos o ministério das finanças enquanto durasse a crise, por manifesta impotência dos seus ocupantes.
Há quem seja mais optimista e tente iludir pessoas e empresas. O governador do Banco de Portugal, em mais um frete político aos camaradas de partido, encarregou-se de manipular a psicologia. O raciocínio é brilhante: como as taxas de juro estão mais baixas, os empréstimos à habitação são menos onerosos; a gasolina está mais barata; há muitos produtos que estão mais baratos; a inflação é quase zero, o que significa que os preços não vão subir; em contrapartida, os salários vão aumentar. Tudo isto conjugado dá, nas contas de constância personagem, um excedente de 1,1% no rendimento das famílias. Toca a gastar, ó gentes, que cresceu o dinheiro na vossa algibeira.
Eis o efeito pedagógico: inusitada, diria em rigor, esquizofrénica crise: está tudo mal, mal como nunca se terá visto dantes, mas estaremos todos melhor. Se calhar, a crise bateu à porta errada.
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