9.1.09

E a crise, não está em crise?


Bartoon, de Luís Afonso, in Público de 09.01.09

Há males que vêm por bem. Primeiro acto: a crise tão funda tem uma função pedagógica. Põe mais economia nas notícias – e com um esforço para decifrar a língua de trapos a que os economistas estão habituados. Fala-se em recessão, distingue-se a recessão da depressão, explica-se o (para muitas gerações vivas) insólito fenómeno da deflação. Segundo acto: os optimistas de serviço, diligentes a encontrar uma réstia de esperança mesmo nos horizontes mais enegrecidos, aprestam-se a ensinar que da crise vem a renovação dos hábitos. Insistem: vamos aprender a mudar de vida por imperativo da funda crise. Dos escombros virá uma vida melhor – assim culminam a récita optimista.


Terceiro acto: na crise sem precedentes (ao recuar nos oitenta anos anteriores), há o governo de um pequeno país periférico que tranquiliza as gentes. Pois vão aumentar os rendimentos dos que continuam a trabalhar. Portanto, uma crise muito paradoxal. Diria: se crises tão profundas e demoradas são isto, que venham crises ainda mais graves e vagarosas, muitas crises como caução do milagre do aumento do rendimento disponível das pessoas. Às malvas a outra faceta da retórica demagógica desse governo: que o cutelo do desemprego é o mal maior da crise. Em que ficamos: a crise é medonha por trazer o detonador da bomba relógio do desemprego? Ou é calmante por esticar os dinheiros das famílias ao fim do mês?


Para quem ande atento às análises mais rigorosas feitas pelo mundo fora, esse pequeno país periférico espraiado diante do Atlântico teima em ser um oásis no meio do deserto de terras atingidas pela crise. Nem que seja por decreto, pois a vontade dos governantes substitui-se à pungente, incómoda realidade. É de uma injustiça atroz que a recessão tenha aterrado logo na véspera das eleições, transtornando os planos de reeleição de governo tão excelso. Muda-se a realidade, então: demorou a reconhecer que a recessão já tocava esse país com as suas arrepiantes unhas, mas por fim a chancela oficial das contristadas palavras do infalível timoneiro confirmou-o. Esse país afinal não é oásis nenhum. Ou sim: pois se as pessoas vão melhorar o bem-estar como sinal da crise…


Uma interessante coincidência: no dia seguinte, o aval da recessão foi confirmado pelo governador do banco central. Ou seja, o timoneiro terá pegado nas informações segredadas pelo companheiro do banco central e antecipou o que este ia comunicar à ansiosa nação no dia seguinte. Creio que a isto se pode chamar "inside trading" – coisa punível por lei, não tivessem os intérpretes do episódio as costas protegidas pela impunidade.


Os economistas que insistem em fazer fretes aos políticos do seu agrado teimam em confundir o público mergulhado na iliteracia económica. Como convencer as pessoas que esta crise não tem precedentes e se faz prova disso com o aumento dos rendimentos disponíveis? Quando as famílias ficam com mais dinheiro em caixa no fim do mês, isso é sinal de crise? Outra interrogação incómoda, só a talho de foice: não é obsceno passar esta mensagem quando, ao mesmo tempo, o combate ao desemprego é a prioridade da política económica que pretende combater os efeitos da crise tão terrível? Expliquem ao exército de desempregados – aos que já engrossam a estatística, e aos que lá hão-de figurar – que os outros, os que não tiveram (ainda) essa desdita, até ficam a ganhar com a crise. Aposto que os desempregados ficam com o espírito (e o estômago) apaziguado.


Por aqui se vê a anomalia dos tempos que vivemos. A própria crise entrou em crise. Um dia destes, até as tempestades mais devastadoras passam a merecer o rótulo do "bom tempo". O odor libertado pelas fábricas de celulose e pelas quintas de suinicultura deixará de ser pestilento, embora o seja, entronizado então no lugar de aromática essência de perfume. A comida mais intragável, afinal um petisco digno de Pantagruel. Nem sei se a própria noite será leito para a claridade e a luz diurna transformada na escuridão total. Até o relativismo perderá a sua relatividade.


O que vale, é que nesse pequeno país periférico a mediocridade medrou. E há quem, do alto da sua estaleca intelectual, se apegue à desonestidade intelectual do governo para fazer prova que a crise não é crise, ou que a crise não tem direito a incomodar a elevação do governo da sua adoração. Torcer a realidade, eis uma lição que não ficou esquecida do velho estalinismo.



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