30.1.09

O labrego choramingas


Queria prometer que deixava de me incomodar com a existência do primeiro-ministro em funções. Queria prometer que deixava de ser motivo para escrever uma linha que fosse, sequer nas entrelinhas. O melhor é adiar a promessa, adiá-la até ao radioso dia em que deixe de o aturar. Que uma carreira internacional é melhor pouso para personagem tão esplendorosa.


Com ele, não consigo muitas coisas. À cabeça, não consigo confiar. Poderá o mal ser meu, mas na oratória digna de delegado de propaganda médica todas as palavras soam a patranha. Não consigo confiar em arrivistas que usam manobras para trepar na escala. Pode ser preconceito, mas à partida desconfio de funcionários que nunca outra coisa fizeram senão abocanhar prebendas justificadas pela militância partidária. Desconfio daquela licenciatura – e não, não é assunto encerrado, por mais que queiram colocar um "selo oficial" a engavetá-lo no arquivo morto. Estes abjectos percursos são um ultraje a quem muito trabalhou para obter licenciatura honrada. Simbólico é tudo isto ser o retrato do amadorismo e do triunfo da mediocridade que por aí campeiam, quando numa terra "normal" a mediocridade nunca conseguiria vingar sobre o mérito.


Também não consigo suportar a pose ofendida, com disfarçada arrogância de permeio, quando é acossado por todos os lados. Faz lembrar as mentes perfidamente inteligentes logo nos bancos da escola, com manipulações a eito e jogos psicológicos que dividem para reinar. (A propósito da inteligência pérfida, uma muito importante diferença: no caso do impecável timoneiro da pátria, só perfídia. Que a inteligência não é um dom que o distinga. Quando muito, esperto. Da esperteza saloia tão típica dos amadores que vingam mercê de tácticas e ardis. Mesmo à imagem do que somos hoje.)


A personagem vitimiza-se quando não domina um cenário que lhe é adverso. Sempre que dava de caras com choramingas que clamam pela complacência alheia, pondo-se no papel de vítimas de quem deles discorda, sentia o impulso irreprimível de dar o braço aos que são acusados de algozes. Pois é odioso o papel treinado desde os bancos da escola, os patinhos feios a chegarem-se junto da maternal professora com um e mais outro queixume debaixo do beicinho. Manipuladores de almas, aproveitadores da ingenuidade comum dos que vão na cantilena e desaguam na solidariedade com as vítimas fraudulentas.


E não consigo suportar a imagem de "homem modernaço", muito arejado, que até veste fatos de estilistas de primeira água, mais a sugestiva encenação do protótipo do homem novo que até faz jogging e é só virtudes. Pode vir todo o pó de arroz que maquilha a epiderme, que escondido detrás das carradas de verniz está o labrego sem remissão. O mesmo que assinou hediondos projectos de moradias na Beira Alta que são atentados à estética, uma confissão indelével da anti-estética que é a sua marca genética. Só um labrego pode ter aquele traço. Podem-nos contar, os fiéis membros de um séquito numeroso, que sua excelência é a sexta pessoa mais elegante do mundo. Como se isso fosse alguma vez possível, como se isso não passasse de mais um inútil fait divers para desviar as atenções do essencial, mais uma peça para o abominável culto de personalidade que noutros tempos daria lugar a ampla chacota e unânime reprovação, por ressoar à "velha senhora" que se especializou no registo hagiográfico dos seus líderes.


Às vezes receio exagerar no diagnóstico. Temo que sejam tantos os anticorpos contra a personagem que comece a perder a lucidez. A cada dia que passa e que a figura se desmultiplica em propaganda que pediu métodos emprestados aos delegados de propaganda médica, ou a um comercial que impinge imóveis a abastados investidores, a cada dia que passa cresce a náusea. Por vezes, a decência mental determina a pessoal censura, o canal de televisão onde a radiosa personagem aparece a dar lugar a outro canal – outro qualquer. Receio exagerar no diagnóstico, mas cresce a impressão de que nunca vi tão mau (nas várias acepções do termo) primeiro-ministro.


Entre os muitos passos desalinhados com a figura, dou conta de uma ideia construtiva a germinar: o incorrigível abstencionista que equaciona a correcção do vício. Só para sentir que esse voto pôde contribuir para que o labrego choramingas não continue a ser déspota com consentimento dos votos. Nem a subtracção ao discriminado exército de abstencionistas lhe perdoo.


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