2.1.09

Sete vidas têm os gatos


Podem vir as tempestades, as pragas mais devastadoras, acidentes macabros, a doença que chega, aleatória. Podem as vagas alterosas esbarrar, com fragor, no seu peito. Estão lá, na linha da frente, os heróis. A dar o peito às balas, numa ostentação de coragem. Destemidos, no íntimo convencimento de passearem ao longo da ténue linha que os separa do fundo precipício. Desafiam o precipício, sem saberem que se caírem no precipício nem toda a singular bravura teria serventia para os furtar à morte certa.


Persistem na audácia, num exibicionismo de doce loucura. Fazem lembrar trapezistas que encantam a audiência com as manobras no fio da navalha, deixando a audiência à beira da apoplexia de cada vez que ensaiam um passo mais afoito que os abeira da queda. Ali trata-se de uma controlada queda, pois sabem que lá em baixo uma rede de protecção impede que se esmaguem no duro solo. Os bravos de que falo distinguem-se dos trapezistas de circo, contudo: coincidem na audácia mas dispensam a rede de protecção. Fazem gala de serem profissionais do risco, de um risco elevado ao expoente máximo pela ausência da rede de protecção. Na expressão de uma demência que chega a ser insidiosa por parecerem desestimar o valor da vida. Soubessem que tinham rede de protecção e perdiam o rasto ao sabor dos actos tresloucados que são sua forma de vida, então remetidos a uma rotineira existência.


Gostava de perceber: se as exibições de bravura são um acto narcísico, convocando a ovação dos que assistem à performance; ou se há empenhamento espontâneo nesta forma de ser, nesta forma de estar, produto da dependência de tremendas descargas de adrenalina. Serão estes heróis garbosos néscios ao ponto de trazerem a existência sempre no fio da navalha, só para arrecadarem o aplauso e a admiração de uma qualquer audiência? Se for esse o caso, cultivam um atrevido desprendimento, uma inusitada forma de serem altruístas: comprazem-se com o risco letal e entretêm a audiência. E pisam os terrenos grotescos da insanidade, de uma particular categoria de ignorância pela insensibilidade aos riscos que correm.


Parece que não sabem que vivem com um pesado cutelo a adejar só uns centímetros sobre a cabeça. Entregam-se aos humores incertos dos factores aleatórios, por mais que queiram convencer os demais que abrigam os riscos sob o seu controlo. Não se compadecem escorregadelas com semelhante forma de vida. Pois o cutelo, ameaçador, está apenas uns centímetros acima da cabeça a anunciar a impossibilidade do erro. Eles teimam na toleima de serem kamikazes de si mesmos. E carecem de audiência, de uma audiência que se sacia na loucura que coloca os heróis no limiar do terrível precipício de onde não há recuo possível. A audiência: ou se satisfaz, por interposta pessoa, da imaginada bravura que gostaria de ser sua, todavia incapaz de sequer a tocar ao de leve; ou se perfila num atroz voyeurismo diante do herói do espectáculo ensandecido, escandalosamente ansiosa por um passo em falso que a faça testemunha de uma vida enfim cerceada.


Uma dialéctica insignificante. Entre os penhores de toda a coragem e os que ambicionam, no seu íntimo, tê-la, coragem contudo ausente. Como se esta dicotomia encerrasse a essência do que mais importa, fosse a afoiteza briosa o feito maior que se leva de uma vida. O que interessa a coragem, o ar donairoso com que passeiam os fautores de feitos demenciais, exibicionistas de uma linhagem só ao alcance dos que confundem a pessoal demência com audácia? Vejo-os, tão altivos e senhores da bravura que os distingue do comum dos mortais, e louvo os medos que dominam o corpo diante de êxtases que são ameaça letal. Esses medos, esteio de uma inteligência desconhecida dos arrojados de peito aberto aos ventos da morte.


Às vezes, nem a maior destreza treinada após anos e anos de façanhas é caução para rejeitar o risco que se transforma em realidade. Só então dão conta, por breves momentos, da demência que atravessou a sua arriscada existência. Nessa altura já é tarde para sequer esboçarem arrependimento. Num instante, uma frase, a derradeira frase, ecoará até cessarem os sentidos: afinal era certo que sete vidas têm os gatos.


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