30.4.09

Da ciência pastel



Produz-se ciência. Às coisas, a sua muito relativa importância. Em todos os lugares, com toda a subjectividade que das muito diferentes pensantes cabeças emerge. Na impossibilidade da objectividade, por recusa de imposições totalitárias (haveria de alguém fixar o que era ciência e o que ficava proscrito), predomina um código de conduta: tudo é ciência; e tudo, mesmo tudo, tem merecimento de investigação científica, com mordomias inerentes – subsídios acima de tudo.


O código de conduta banaliza a ciência. Tomo o juízo à vontade. Também faço ciência – ou acho que produzo ciência, a crer nos parâmetros dominantes. Mas muitas vezes questiono a utilidade da ciência que vou legando ao conhecimento. Se tudo o que enriquecer o conhecimento tiver o merecimento de ser ciência, somos todos produtivos (em doses variáveis). Não está em causa sermos prolixos na ciência que se produz. Não interessam as resmas de papel que ninguém, ou muito poucos numa perspectiva optimista, lê. Devia a utilidade vingar como critério. Mas é tudo ao contrário. Fervilha um espírito inventivo na ciência. Hoje, tudo é ciência. Todos os dias se inventa ciência. Abandalhada a ciência, talvez ela tenha perdido o seu significado.


O tal código de conduta é terrível. Há uma espécie de pudor nos pronunciamentos sobre a ciência produzida pelos outros. Um acordo tácito sobre a elevada respeitabilidade das investigações que enchem copos vazios de utilidade. No mar da ciência desagua uma abominável solidariedade corporativa, a casta que se protege às escuras e, se preciso for, assina por baixo como caução da ciência da qual desconhece sequer os rudimentos. Quando há questiúnculas, elas servem-se em ódios de estimação que consomem excessivo tempo em lutas de galos, quase tão inúteis como alguma dessa ciência.


Tenho a impressão que faz parte da factura da democracia. A democracia, diz-se, há-de chegar a todo o lado. Já o ensino superior foi democratizado, agora que a licenciatura é um mero apêndice quantas vezes sem utilidade para o mercado de trabalho. Na investigação científica, a democratização já passou da fase da insinuação. É seu património genético. A fasquia de exigência está ao nível da maré baixa. Talvez sinal da exigência intelectual que por aí abunda. Fora e dentro das universidades, ungindo com seus dedos os laboratórios onde se produz a tão inútil ciência. À falta de estaleca para a ciência que tinha dignidade de assim se chamar, reproduz-se a ciência manga-de-alpaca porque inventam eles próprios a ciência em que depois se notabilizam.


Convém moderar os ímpetos: a ciência, se é prolixa, não pode ser tão inútil quanto se apregoa. Pelo menos mantém ocupada gente que, de outro modo, teria pouco que fazer. Ou gente que, de outro modo, teria outra profissão com menos alcavalas. A subjectividade da ciência é um bálsamo para as estatísticas do desemprego. Mas isto chama-se ciência onanista. São os próprios, e apenas eles, que se excitam com a ciência que produzem e reproduzem. Causa-me espécie a impressão da enraizada ciência: os seus actores não andarão longe de parasita gente, coberta pela superioridade do trabalho intelectual, apontando a sua produção como incalculável contributo para o "avanço da sociedade" (outra falácia). E o que interessa, afinal? Uns subsídios daqui e dali, para uma vida faustosa com algum turismo pelo meio a pretexto do trabalho que exige uma viagem, aqui e ali. Sobejam muitas páginas que só serão lidas por quem as escreveu, ou um longo bocejo da ciência em círculo fechado, a sua utilidade em desmaio. E um cortejo de vaidades pessoais, o somatório de poder que alimenta produções irrisórias quando o nepotismo passa a critério relevante. E alguma desonestidade intelectual de permeio.


Repito o obrigatório registo de interesses: amiúde interrogo a utilidade da ciência que ando a produzir. Não chamo ao meu castelo a superioridade do saber por contraponto ao que muitos andam a produzir. Se tanto, um pungente auto-retrato, com fatal derivação por patamares por onde andam muitos outros. Se a "a ciência" é isto, não me apetece ser "cientista" de ciência alguma.

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