31.7.09

A vergonha da direita


Argumenta João Cardoso Rosas (professor de Filosofia na Universidade do Minho) que o fantasma do salazarismo é um fardo pesado sobre as pessoas de direita. De tal forma que têm vergonha em dizer que são de direita.


Para começar em concordância com Rosas: "[é] claro que o espaço político dos regimes pluralistas é mais complexo que a visão simplificada que esta dicotomia permite: há muitas direitas e muitas esquerdas". É desta clarividência que precisamos quando alguns amadores tecem esquadria tão milimétrica entre "esquerda" e "direita". Já antes aqui o dissera: há esquerdas, no plural, como há várias direitas. Daí o profundo erro quando se faz esta arrumação tão hermética, como se afinal o pluralismo invocado não passasse de retórica.


Saio da concordância com Rosas para um rol de discordâncias. A começar com esta: sou de direita (de uma certa direita) e não tenho vergonha de o proclamar. É o problema das generalizações: são perigosas. O mal é que o artigo de João Cardoso Rosas parte em demanda de generalizações. O raciocínio ignora as excepções, que neste caso não parecem confirmar a regra. Como petição de princípio, até aceito que a vergonha em ser de direita seja ditada por mal resolvidos problemas com o longo consulado salazarista. Por cá, ser de direita é malquisto. Todavia, este argumento não explica um padrão. Por um lado, se assim fosse haveria uma condenação inter-geracional (e perene) em ser de direita. Ora a minha geração e as que vêm atrás não podem responder pelas atrocidades cometidas pelo Estado Novo. Que a ditadura tenha sido de "direita" (de extrema-direita, para ser rigoroso) não desqualifica quem não seja atraído por uma das várias esquerdas que a paisagem política oferece. E Rosas conhece opinadores e pensadores mais jovens que não têm rebuço em ser de "direita".


Por outro lado, Rosas descobriu que este pudor se estende ao nome dos principais partidos que as convenções situaram "à direita": "[a] força política situada mais à direita intitula-se partido do "Centro Democrático" e, como se isso não bastasse, também "Social", o que não anda muito longe de "socialista". O partido mais representativo da direita portuguesa (…) chama-se "Social-Democrata", ou seja, tem a designação habitual dos partidos da esquerda socialista na Europa." Não acredito que Rosas não veja para além dos limites da paróquia. Uma vista de olhos por outros partidos de direita(s): Partido Popular em Espanha, União para um Movimento Popular em França, Partido da Liberdade em Itália, União Democrata Cristã na Alemanha, Partido Conservador no Reino Unido – só para recolher uma mão cheia de exemplos. Não há em nenhum destes partidos a palavra "direita"; há, em alguns deles (Alemanha e Reino Unido), a evocação de termos que remetem para a "direita" (conservadorismo; e democracia cristã, influenciada pela doutrina social da igreja – neste caso, pegando no raciocínio de Rosas, também há tangência com socialismo?). Outra dúvida: dois desses partidos usam o termo "popular"; não é este termo, na semântica do hermetismo ideológico, referencial de "esquerda"? Por junto, como se justifica esta "vergonha" da direita europeia? Também tiveram os seus Salazares?


Já na semana anterior João Cardoso Rosas tinha escrito um texto no mesmo jornal que me deixou a macerar em dúvidas. Foi às raízes do liberalismo: "[o] liberalismo é uma ideologia de esquerda. Com poucas excepções, o liberalismo de direita é a máscara retórica do seu conservadorismo". Com uma semana de antecedência, Cardoso Rosas preparou os leitores para o argumento da vergonha da direita. Portanto: os "liberais de direita" não são genuínos liberais. O seu liberalismo é só para ocultar os fantasmas que esconderam num armário – os fantasmas do conservadorismo, pois diz-se que o conservadorismo deixou de estar na moda num mundo que já entrou em sucessivos pós-modernismos. Daí que "a esquerda liberal [seja] a melhor intérprete da protecção da liberdade assim entendida (...): a liberdade de cada um só deve ser limitada pelo dano que possa causar a outrem". E sentencia que "[q]uando a direita defende a liberdade recorre a uma interpretação muito diferente, anti-igualitária e conservadora: a liberdade estritamente limitada pelos preconceitos, pelos costumes e por instituições como a igreja estabelecida e um modelo fixo e imutável de família".


Ora, se tivesse perdido a pessoal bússola ideológica, estaria imerso numa profunda esquizofrenia. Eu, de direita, liberal até às entranhas, perante um texto que fixava azimutes tão diferentes do que conheço. Mas, lá está, o problema das generalizações é que delas depressa se soltam alçapões onde caem os seus fautores. Pois nem toda a direita é conservadora. Nem toda a direita é de sacristia. Nem toda a direita defende esse conservadorismo religioso que João Cardoso Rosas determina como sinal identitário da "direita".


Tirei destes textos três conclusões. Primeira: o que interessa se o património genético do liberalismo é de "esquerda" ou de "direita"? Segunda: acho enternecedoras as certezas absolutas que certas esquerdas apresentam, insinuando um totalitarismo intelectual que, no caso destes "liberais de esquerda", traz interrogações ao seu pensamento liberal. Terceira: considero-me de direita mais por alergia às esquerdas do que por identidade ideológica.

30.7.09

Ibéria à vista?


Aos amantes da portugalidade.


Deve haver por aí muita gente interessada em destruir a, dizem, nação mais velha da Europa – ou, pelo menos, a que tem as fronteiras estáveis mais duradouras (como se essa fosse uma credencial de grandiloquência pátria). Deve haver muitos traidores à pátria que, volta e meia, recuperam a herética "união ibérica". Desta vez, os amantes da sacrossanta portugalidade dão um desconto e esboçam um esgar de desdém: afinal, a mais recente manifestação de iberismo teve origem num barómetro de opinião publicado pela Universidade de Salamanca.


Um número chocante – repita-se: caso isto não viesse de uma universidade acoitada nessa terra de onde nem bom casamento nem bom vento nos chegam – foi este: quarenta por cento de portugueses não têm problemas em aceitar a união ibérica. Curiosamente, quando os espanhóis foram interrogados apenas trinta por cento alinhou pelo mesmo diapasão. Um repto aos que defendem o mito da portugalidade intangível: ponham de parte o preconceito (acharem que este estudo não é imparcial porque foi feito por uma universidade espanhola) e confessem se não ficaram apavorados com tão elevada percentagem de patrícios que gostariam de viver sob uma nova bandeira – a da união ibérica. Já sei a resposta: a maioria (sessenta por cento) ainda rejeita a hipótese. Firmes, as âncoras da portugalidade. Quem falou que esta era uma notícia alarmista?


Há ali uns números que me causaram perplexidade (ou, como ouvi hoje aquele inefável senhor que se diz representante dos pais dos meninos que andam nas escolas, "senti-me perplexizado"). Julgava que os espanhóis eram imperialistas. Os que cultivam os rituais da divinizada portugalidade vêm fantasmas a acenar, ameaçadores, do outro lado da fronteira. Fazem rezas para afastar o satanás do iberismo. Temem que a ibéria seja apenas um encapotado motivo para tornar a Espanha ainda mais imperial. Anexando o cantinho onde, a ocidente, termina a península ibérica. Ora, se estes fantasmas fizessem sentido, expliquem-me como só trinta por cento dos espanhóis gostariam de se unir a nós? Reparem: setenta por cento dos espanhóis não querem estragar a sua hispânica grandiosidade fundindo-se com os pequenotes dos lusitanos. Ainda sobram alguns fantasmas?

No mesmo dia em que o barómetro foi divulgado, o banqueiro do sistema (o dono do BES) deitou mais gasolina para a fogueira. Defendia uma das suas damas – todos as obras públicas elefantes brancos que o governo do momento quer plantar. Para o banqueiro, as tão polémicas obras públicas (TGV e aeroporto) são imprescindíveis para construirmos a ibéria (não sei se hei-de escrever com i maiúsculo ou minúsculo). Diriam os amantes da portugalidade, eles também tão seguidores de teorias da conspiração: isto foi tudo combinado – a divulgação do estudo da Universidade de Salamanca e as palavras do patriarca da banca indígena.


Os pesadelos dos tributários da santa portugalidade ainda não tinham terminado. Redobraram as cefaleias nos que dedilharam as páginas do Diário de Notícias de ontem, quando o único laureado com o Nobel da literatura comentou o caso, concluindo desta forma: "(…) o futuro já está escrito, nós é que não temos ainda a ciência necessária para o ler. Os protestos de hoje podem tornar-se em concordâncias amanhã, também o contrário poderá suceder, mas uma coisa é certa e a frase de Galileu tem aqui perfeito cabimento. Sim, a Ibéria. E pur si muove..."


Há algo na alergia dos arvorados da portugalidade que me mete espécie: o que os incomoda é a altissonante ideia de uma união ibérica, não a conquista do pequenote pelo chauvinista grandalhão. Só que, numa união, os dois perderiam a identidade a que os cultores do nacionalismo (dos dois lados) se habituaram. Os dois, e não apenas o mais pequeno. A menos que continuem a dar para o peditório de uma conspiração qualquer e descubram na "ibéria" um pretexto para o grandalhão abocanhar o pequenote.


Hoje da manhã, primeiras informações da bolsa de valores de Lisboa (essa coisa esotérica): as acções do BES eram as que valorizavam mais, acima dos três por cento. Cheira a causalidade?

29.7.09

E se a esquerda caviar aterrasse no cadeirão do poder?


Consta que este pedaço de terra que fica nos confins da Europa ocidental, bordejado pelo furioso Atlântico lambido por enraivecidas rajadas de vento, é caso único na geografia europeia: os dois partidos da extrema-esquerda conseguiram 20% dos votos nas últimas eleições europeias. Este é o mote para ter um sonho (em rigor: um pesadelo) de olhos abertos. E imaginar o que teríamos se a extrema-esquerda caviar algum dia amesendasse no apetecível cadeirão do poder.


Vem isto a propósito de algumas ideias – como direi? – extravagantes que desfilam através da febril imaginação de dirigentes do Bloco de Esquerda (BE). Há semanas, o fradesco líder do conglomerado de partidos de extrema-esquerda sentenciou, com aquele ar cheio de certezas que sequer merecem um ai de contestação, que empresas com lucros deviam ser proibidas de meter trabalhadores no fundo de desemprego. Para hoje estava reservada outra preciosidade: o candidato à câmara de Lisboa acordou de um sonho muito revolucionário e decidiu tirar o dia para embirrar com condomínios fechados. Que também deviam ser proibidos por lei.


Estou cansado de ler e escutar o interminável manancial de demagogia dos partidos políticos. Sem excepção que se aproveite. Dirão: é a sua função. Como podem captar votos se não apresentarem ideias, se não fizerem promessas que, fossem cumpridas, fariam desta terra um paraíso? Escusado era o exagero na demagogia. Propostas, quem as não tem? Difícil é convencer as gentes que as propostas têm condições para prosperar. Nisto, a extrema-esquerda caviar vence os outros aos pontos – até os que, mandaria a lógica, deviam ser campeões da demagogia (os partidos do bloco central).


Às lustrosas ideias que os estrategas do BE apresentaram nos últimos tempos. Propõe a extrema-esquerda caviar, enfaticamente, que as empresas com lucros sejam proibidas de efectuar despedimentos. Proibidas por lei. Ou seja: a gestão das empresas seria nacionalizada. Contudo, o fradesco líder, quando proferiu solene anúncio de que as coisas assim deviam ser, esqueceu-se de esclarecer alguns detalhes importantes. Primeiro: o conselho de administração passaria a incluir um apêndice em representação do Estado, para vigiar de perto a gestão da empresa e evitar a batota dos despedimentos nas empresas com lucro? Os departamentos de recursos humanos passariam a ser geridos por sindicalistas? Porventura não se terá dado conta que seria prudente a uma empresa declarar prejuízos, pois não ficava impedida de despedir trabalhadores se isso fosse adequado à sobrevivência da empresa. Ensinam os calhamaços do direito que uma proibição só é eficaz se trouxer de arrasto uma sanção. O que me traz a outro lapso do guru de muita burguesia jovem e citadina: que penalização pensou para as empresas lucrativas caso fizessem tábua rasa da proibição e desatassem a despedir trabalhadores? Seriam nacionalizadas? Os lucros seriam abocanhados por um fisco devorador? Os gestores iam malhar com os ossos à cadeia? Nada e mais nada, foi a revelação daquela conferência de imprensa.


Hoje, ensejo para travar conhecimento com uma maravilhosa ideia: a ruiva, barbuda personagem que concorre à câmara de Lisboa decidiu que os condomínios fechados deviam ser proibidos por lei. Outra proibição. E, mais uma vez, a alergia congénita aos sinais exteriores de riqueza. Daqui, um desafio: por que não propõem a proibição da riqueza? E, já agora, o próprio dinheiro – a raiz de todos os males? Prometam que, caso algum dia cheirem o cadeirão do poder, ordenam a expropriação dos lucros das empresas. Ai o lucro, o nefando lucro, que rima com o pior dos instintos do ser humano – ser capitalista, o que quadra na equação com ganância e insensibilidade social.


Juro: gostava que fosse possível ver as coisas como se elas se passassem num filme de ficção científica. Só para ter a excitante sensação de ver a extrema-esquerda caviar a tomar posse num governo de coligação com quem agora está desavinda. Só para os ver a traírem a sua identidade genética. E só para ver se tinham coragem para impor ao parceiro do governo as revolucionárias medidas que por aí andam a exortar. Gostava de ver. Mas apenas numa tela que fosse toda de ficção científica.

28.7.09

Sétima Legião, "A Partida"

A partida

A gare espera pela dolorosa hora da partida. As carruagens, ainda inertes, anunciam o excruciante momento em que deixam de ser ver – quando ele, à janela, acenar na direcção dela, à medida que ela se perde num vulto pequeno a dizer-lhe adeus. Aqueles minutos até o relógio gritar a partida do comboio, aproveitados em toda a sua intensidade. Como se entre os segundos não houvesse pausas. Nem sequer desaproveitassem o tempo para respirar. Todos os segundos sorvidos na exaustão de uma despedida que não queriam que estivesse a acontecer. Parecia que nunca mais se voltavam a ver.


Beijavam-se, uma e outra vez. Perdiam-se em afagos. Creio que faziam juras – daquelas melodias cheias de violinos, ecoando as juras de amor eterno que esgotam a sua perenidade quando são feitas. Contavam os minutos em retrocesso enquanto se entregavam a demorados abraços onde os seus corpos se fundiam no aperto do abraço tangente ao aperto do coração que os consumia. Parecia que os dias acabavam nesse dia.


À distância, julguei ver os seus olhos marejados depois de ele sussurrar meia dúzia de palavras sentidas ao ouvido dela. Ele limpou uma lágrima furtiva que teimava em deslizar pelo seu rosto empalidecido pelas saudades ainda extemporâneas. Nisto, fitaram o horizonte, deixaram que os seus olhos se perdessem na vastidão ausente do horizonte. Acreditaram que nessa contemplação conseguiam parar os ponteiros do relógio – ou, pelo menos, assim ditar o desejado retardamento da partida do comboio. Haveria um qualquer motivo para atrasar o horário do comboio. Nunca um atraso na partida tão apetecido. De repente, parecia que todo o tempo se enclausurara no horizonte plúmbeo diante dos seus então aquietados olhos, ou os ponteiros do relógio subitamente cessando a sua marcha.


Nesse êxtase, toda a sua cumplicidade desfilou diante dos olhos. Porventura não em compasso, os amantes ali a reviverem os diferentes instantes que emolduraram nas suas memórias. Os dedos das mãos, entrelaçados, escondiam o frio que as saudades antes do tempo ditavam. Parecia que a despedida consumia os dias seguintes, como se sentissem já órfãos pela tão pungente ausência.


Enfim, despertaram do momentâneo sonho acordado a que se entregaram. Olharam para o relógio da estação e resignaram-se à contagem decrescente até que a voz mecânica que anunciava partidas e chegadas sentenciasse a partida. Em lágrimas, ela pediu-lhe que não entrasse no comboio. Que fugissem os dois da cidade, sem destino, sem se amedrontarem com o que estivesse para vir por causa dos compromissos cerceados. Queria que se entregasse, como se todo o mundo fosse composto só por eles. Ele enxugou-lhe as lágrimas e com a resposta cravou-lhe, fundo, o punhal da decepção. Não podia. Por mais que quisesse, não podia – ou, porventura, não queria tanto. Parecia que o mundo desabava em cima das suas cabeças: a dele, pela resposta que acabara de dar; a dela, pelas palavras que acabara de ouvir.


Escutaram, enfim, o chamamento envenenado da mecânica voz feminina que anuncia as partidas de comboios. A partida iminente acelerava a despedida. Num assomo de coragem, ela reprimiu as lágrimas e ele encontrou forças para deixar de ter os olhos marejados. Renovaram as juras que são tão eternas como o instante que se consumia no momento em que se ajuramentavam. Escorregaram para o óbvio: a mortificação que a ausência ia fermentar, as imensas saudades que seriam assegurada razão para insónias. O último beijo, já não tão lânguido. Um derradeiro abraço, o pretexto para eternizar o odor dos seus corpos só para atenuar a ausência que os iria consumir.


Parecia, com a partida tão dramatizada, que jamais se voltariam a ver. Ao menos ficariam, perenes, aqueles intensos instantes da partida. Ao menos teria essa serventia, a partida. Mesmo que nunca mais houvesse tempo destinado a eles.

27.7.09

Viagens e (a destruição de) barreiras mentais


Vamos para longe e a cabeça parece que se refresca. Será a predisposição para conhecer o desconhecido, a vontade de embeber numa cultura diferente – ou, talvez, pela distância e através da temporária visita, para se ser diferente do que se é na nativa terra. Uma das vantagens de viajar é que estamos abertos a fazer coisas, a ver coisas, à experimentação do que nos recusaríamos a fazer em casa.


Quem estaria disposto a comer tubarão mergulhado numa saborosa mistela de mariscos e afins? Ou a beber leite de burra acabado de mungir e servido em copos que ficam a dever à higiene a que estamos habituados? Quem aceitaria ingerir uma espécie autóctone de tarântula misturada no meio de uma salada? Quem teria estofo para tolerar a imundície que toma conta de certos lugares a que se convencionou chamar "subdesenvolvidos"? Alguém aceitaria almoçar no chão e reparar que à sua frente estava um prato, um copo e um guardanapo – nada de talheres? São, respectivamente, polaróides de Santiago do Chile (os dois primeiros), das Seychelles, de Bratislava, de algures no meio de um deserto na Tunísia. (E, retomando o texto de quarta-feira da semana passada, outra interrogação – em jeito de provocação – aos cultores da ideologia em apreço: teriam estômago para visitar o museu do comunismo em Praga?)


Não há melhor maneira de crescer (partindo do pressuposto que podemos sempre crescer com o que aprendemos ao longo de uma vida inteira). É viajando. Conhecer todos os pedaços do mundo que as viagens possam trazer aos nossos olhos. Às vezes, abdicar de preconceitos que foram em nós fermentando à medida que se enraizava uma maneira de ser e de estar que é muito "local", que em muito sedimenta uma pertença. Nunca como lá fora as barreiras mentais amolecem para deixar entrar hábitos locais que seriam terminantemente rejeitados em casa. Pisar chão desconhecido rebenta com os depósitos de oxigénio que teimamos em manter encerrados enquanto andamos por casa. E os olhos conseguem ver de maneira diferente, talvez embriagados pela vertigem dos novos lugares por conhecer, ali mesmo defronte dos olhos sedentos.


É quando, já na temperada rotina do lugar de sempre, estala uma impertinente dúvida: a apetência para ver e ser diferente será apenas a excitação pelo desconhecido, como se fosse uma injecção que anestesia da essência que somos (ou que, pelo menos, de nós conhecemos)? Nessa altura, já manietados pelo que julgamos ser a nossa "normalidade", irrompem as perguntas incómodas. Num suicidário devaneio que esbate as memórias dos sítios desconhecidos que o deixaram de ser mercê de uma viagem. É uma difícil dialéctica: entre a pomposa, rotineira "normalidade" dos dias correntes passados na terra a que nos convenceram pertencermos; e a libertária experimentação dos lugares desconhecidos, que adicionam lastro de crescimento interior. Quando a primeira se sobrepõe à segunda, ajuda o tempo que se esfuma a adormecer as memórias trazidas de lugares distantes. A utilidade da viagem parece consumir-se no tempo que lhe sucedeu. Do lugar distante sobram apenas umas nebulosas ruínas na memória.


É nestas alturas que cresce o sonho – o irrealizável sonho – de ser ininterrupto viajante. Pois o mal é que regressamos a casa (e não há aqui negação da casa que é pertença estabelecida). O maior mal de todos é que não se aprende nada com a aprendizagem que o desconhecido sítio trouxe. A faca cruenta que se espeta fundo no dorso é o que já sabemos: as viagens são sempre temporárias. O que é dolorosamente duradouro é pertencermos a um lugar. Ao lugar de onde saímos quando a sede de conhecer outros lugares investe, furiosa.


Daí a interrogação: o encantamento pelas viagens e pelos lugares por conhecer não será uma dissimulada negação de pertença?

24.7.09

Espelho meu, espelho meu (registo psicanalítico de um primeiro-ministro muito narcísico)


Esforço-me. Evito os noticiários na televisão. Nos jornais, salto a secção política. Mas não consigo. Há um cerco noticioso, e insidioso, que me assalta. Não consigo passar uma semana sem que dos dedos desçam ao teclado do computador umas palavras sobre o impressionante primeiro-ministro. O primeiro-ministro que, todo ufano e cheio de soberba, assegurou que está para nascer primeiro-ministro que consiga apresentar melhor défice orçamental.


Todos temos direito aos nossos "momentos José Mourinho" – pensei para com os meus botões ao ler aquela assombrosa firmeza. E não consegui reprimir a ideia de ver a personagem a mirar-se no espelho, no espelho com dotes de prestidigitador, e a interrogá-lo: "espelho meu, espelho meu, diz-me se há melhor primeiro-ministro do que eu?"


De repente apeteceu-me saber de psicologia. Apeteceu-me mergulhar nos meandros insondáveis da mente humana, esquadrinhar os ensinamentos da psicanálise. Só para entender os corredores interiores da mente de uma personagem que tem tanta necessidade de se afirmar a si mesmo. Mas para quem? Para quem o elege, ou para si mesmo? Algo vai mal naquela cabeça quando se nota a urgência em excitar em público as – na sua maneira de ver – maravilhosas qualidades. Sempre convivi mal com arrebatamentos de narcisismo. Tenho para mim que os que se embrulham no lençol narcísico têm problemas mal resolvidos com o passado e são uma aparência de si mesmos no presente. Quem não tem dúvidas das suas qualidades não precisa de se vangloriar em público.


Os zelosos fazedores de imagem – afinal, o que mais conta nesta figura – deviam aconselhar o senhor primeiro-ministro a ter mais humildade. Posso estar enganado no diagnóstico, mas a sobranceria com que aparece a reclamar para si o estatuto de melhor primeiro-ministro da história (e, porque não, até de todo o futuro que está para vir) é contra-producente. Desconfio que as pessoas não suportam a vaidade a rodos dos narcisistas que se colocam nos píncaros. Porventura há aqui uma inspiração no famoso treinador Mourinho, que não se cansa de afirmar em público que é o maior da classe. E como tem um numeroso séquito que assina por baixo o auto-panegírico, os consultores do primeiro-ministro quiseram decalcar as personagens e o método. Saltaram um importante aspecto: só se compara o que é comparável e quem é comparável.


Sim, sei que sou suspeito e que desenvolvi um – por assim dizer – ódio de estimação pelo senhor primeiro-ministro. Portanto, não sei se exagero ao concluir que a sobranceira narcísica não ajuda a compor a sagrada imagem que a figura adora cultivar. Caso estivesse preocupado com o destino da personagem – o que não é o caso – aconselharia moderação e humildade. É que os "momentos José Mourinho" fazem sentido naqueles que têm razões para os reclamar. Por mais que o primeiro-ministro ache que esse é o seu caso, que se convença, de uma por todas, que só se for naquele universo muito restrito dos seguidores que o endeusam e do espelho onde se fita, o espelho que o convence a exercitar o auto-panegírico. Este primeiro-ministro narcisista é uma cacofonia.


Já o disse, acho insuportáveis os narcisismos. Mesmo aqueles que até têm razão de ser, pelas qualidades de quem se eleva ao púlpito narcísico. Quando alguém reclama a si um estatuto narcísico que só nos seus próprios sonhos faz sentido, o máximo que consigo é esboçar um sorriso que mistura desdém e comiseração. No caso do primeiro-ministro, a fobia pelo narcisismo fala por si: diria o psicanalista, talvez um passado atormentado, as inseguranças muito bem mascaradas pela pose assertiva, o expediente do narcisismo para ocultar o passado pontuado pelo negrume e o tapete de inseguranças debaixo dos seus pés.


Estou neste desconforto: volta e meia, lá ando às voltas com o furibundo incómodo que a personagem me causa. Mau de mais para ser verdade, a personagem e a pessoal irritação que me causa. Quando é que, de uma vez por todas, cumpro a promessa de deixar de escrever sobre a figura?

23.7.09

Águas turvas



Provavelmente escurecidas, as águas, pelo cansaço da claridade. Aquela claridade que trazia a nitidez das coisas aos olhos. Que desempoeirava as ideias que as coisas pontificavam na sua resplandecência. Eu digo: que nos cansamos do sossego da existência. De tempos a tempos, o corpo mergulha nas turvas águas por cansaço da bondade que visitou a vida. A digressão pela antítese das sensações que trazem reconforto é um mal necessário: só assim alcança o valor das coisas na sua claridade.


Contudo, é desagradável a deambulação pelas águas escuras e fétidas por onde o corpo loucamente arremete. Covardia não é acusação com valimento. Insensatez, porventura. Afinal, quem aposta na imprudência de vegetar nas águas que transportam o lodo viscoso que prende o corpo, e por tempo excessivo, ao seu leito desagradável?


Uma coisa é a necessidade de encontrar nas lamacentas águas depurativos predicados. Eis a paradoxal imersão no seu maior esplendor. Como é possível fazer termas – as termas que a peregrinação interior convoca – em embaciadas águas? Outra coisa é o corpo sentir-se agrilhoado pelas lamacentas águas em que quis repousar. A certa altura, a vontade perde a sua autonomia, dominada pela espessura das águas turvas onde quis macerar. Esse é o dilema: as águas turvas abraçam o corpo, manietam-no, e quando ele quer emergir em direcção às margens há uma força titânica que o prende ao caudal lodacento.


Por mais alto que gritem as saudades da claridade dos dias soalheiros e dos alegres, cristalinos regatos que descem a serrania, o espartilho das águas turvas é um tiranete que amordaça a vontade. Não são depurativas as águas turvas. São o que são: turvas, escurecidas águas, vegetando na sua inércia, essas águas que não perfumam esperança alguma. Debate-se a existência com a armadilha do arrependimento. Soam, dolorosas, as interrogações que pontuam o arrependimento: por que razão houve cansaço da claridade das coisas? Por que se inebriou a existência pela contradição da sua bondade? Imersa nas embaciadas águas, é como se tivesse abdicado da vontade, entregue aos caprichos malévolos das mortiças águas onde está aprisionada.


Só então ganha consciência do equívoco que fora mergulhar nas águas turvas. É como se tivesse dado em passo com o precipício à sua frente; as leis da física deixam sem remédio o trambolhão no vazio. Eis o maior risco da atracção, da perigosa atracção, pelas águas turvas que a certa altura estranhamente acenam com a sua fingida depurativa condição. Quando dá conta do passo em falso, que é quando os pés se atravancaram num cadafalso espinhoso, estala na boca o incendiado arrependimento de ter abandonado os dias que eram de uma resplandecência que se tornou cansativa. Mal por mal, que sobrasse esse cansaço. Ao menos era um cansaço benigno.


Ao cabo de épicos esforços, por fim o corpo liberta-se do espartilho das águas lamacentas. Sai exausto. Tisnado pela acidez das águas desmaiadas que o fizeram refém por tempo demasiado. Enfraquecido, as forças tão exangues depois do combate desigual com as fétidas águas que embaciavam os sentidos. Mas então percebe como são belas as coisas belas que a existência lhe tem para oferecer. Diria que o mergulho nas turvas águas é um mal necessário. A reeducação para suportar a frondosa paisagem que os dias claros lhe querem dedicar. Os males que chegam por bem.


O pior é se, dobrada a armadilha de umas águas lamacentas, tempos mais tarde se retoma o cansaço dos dias claros e uma súbita pulsão pelo regresso às águas turvas se apodera de tudo. As lições de outrora nada terão valido. Ou é a memória que se esbate no ténue fio do horizonte que enfraquece a espessura das aflições trazidas pelas águas turvas. Pode ser cíclico o movimento que traduz a alternância entre o conforto das sensações agradáveis e a temerária atracção pelo abismo. Ou apenas o cansaço das rotinas. Que explica o inexplicável, irracional devaneio pelas águas turvas.

22.7.09

Deixem o comunismo ser uma coisa legal


Sem a menor ironia. Precisamos do comunismo – e de partidos comunistas ou afins – para manter o viço da democracia. Para nos lembrarmos que é tão importante a liberdade de expressão, as liberdades individuais, o direito à dissidência sem arrastar com os ossos no cárcere ou sem pagar com o elevado preço da vida, a emblemática tolerância.


O título do texto pode parecer bizarro, atendendo ao fel que já algumas vezes aqui destilei contra o comunismo (e, diga-se em meu abono, contra qualquer totalitária ideologia). E o título enverga um contexto: o pé-de-vento motivado por uma ideia do desbocado líder regional da Madeira. É curioso como no continente tantos fustigam a folclórica personagem e avisam que não a devemos levar a sério quando escorrega para a incontinência verbal; e, contudo, esses tantos caíram na esparrela que o "soba da Madeira" (assim é carinhosamente tratado pelos seus dilectos críticos) lhes preparou. Foi enternecedor ver como um coro de gente muito ofendida se atirou contra Alberto João. Entre comunistas e não comunistas ecoou um sentido protesto contra a tola ideia do madeirense. Não chegaram a perceber que aquilo não passava de uma provocação tonta. Só não entendo como andam por aí a apregoar aos quatro ventos que não se deve dar ouvidos às "imbecilidades" que o senhor da Madeira diz. Mas depois, quando lhes pisam o calo, tratam de dar valor – e muito – às palavras proferidas pela personagem. Em que ficamos?


Estou à vontade no assunto: já aqui deixei palavras que defendiam o cabimento do comunismo no nosso sistema político (apesar de a considerar ideologia execrável). Já agora, porque convivo mal com desigualdades, defendi a existência do comunismo e de qualquer outro totalitarismo. Mesmo que seja o nefando – que o é – "fascismo". O sistema político não devia dar tratamentos preferenciais a certos totalitarismos. Todos os totalitarismos têm o mesmo denominador comum: uma alergia à democracia e ao pluralismo político. Em alguns casos, essa alergia é encapotada. Noutros é ostensiva.


Em defesa da dama comunista, um extenso coro. Não vale a pena mencionar a ofensa dos comunistas: afinal eles eram os visados; e, afinal, gostam de vitimização. Mais uma oportunidade para resgatarem o passado de "resistência anti-fascista" de braço dado com o romantismo das suas vidas clandestinas. Curiosa foi a defesa de honra do comunismo feita por não comunistas (e por alguns comunistas reciclados, num regresso à teoria da reminiscência de Platão). Eis o argumento: é o contexto e as suas circunstâncias que justificam a deferência ao comunismo, por contraponto com o extremismo que exibe as saudades da ditadura salazarista.


Custa-me a entender o argumento. É como se vivêssemos numa concha fechada, totalmente hermética aos acontecimentos emoldurados na história da humanidade. Não interessa isolar o contexto e as circunstâncias que parecem admitir o comunismo como idiossincrasia pátria. Mais alto falam as atrocidades creditadas aos vários totalitarismos de que há memória. O comunismo tem a sua conta, uma conta robusta. Falta argúcia à ideia de que, no nosso contexto, o comunismo não podia ser proibido por devermos a muitos comunistas o combate à ditadura salazarista. Ontem li no Público, pela pena do degredado Avô Cantigas, a pior síntese deste argumento: "[m]eter no mesmo saco uns e outros seria misturar num mesmo julgamento político e moral os algozes e as vítimas". E o mal, comprovado, que os comunistas fizeram pelo mundo fora? E, a propósito da invocação do contexto nacional, não contam as manobras do PC para a instauração de uma "ditadura do proletariado" logo a seguir à deposição da ditadura anterior?


Sem um grama de ironia que seja, por favor deixem o comunismo em paz. O comunismo e todos os demais totalitarismos. A sua existência na paisagem política é terapêutica. Por um lado, uma bofetada de luva branca da democracia nos totalitarismos que acolhe no seu seio. Se um destes totalitarismos amesendasse no poder, teríamos a oportunidade de testemunhar a mesma tolerância? Dispenso-me da resposta. Por outro lado, os comunismos, fascismos e outras derivações totalitárias devem existir para que os democratas e os adoradores das liberdades nunca se esqueçam da antítese da democracia e do mundo repugnante que é representado pelos totalitarismos. Quantas vezes resgatamos a memória através da visita a museus que abrigam esses vestígios de forma tão viva?


Uma interrogação final: e se fosse dada a oportunidade aos comunistas caseiros para opinarem sobre a existência de partidos "fascistas"? Só para se ver como é encantador sabê-los partidários da divisa "dois pesos, duas medidas". Um hino à tolerância, é o que eles são. Proibir a sua existência é um atentando à democracia. Um gesto suicidário da própria democracia.

21.7.09

Desvio de percurso


Sabes? Nem sempre a linearidade de uma recta é o caminho mais curto entre dois pontos. Os trajectos que devemos fazer, num destino que buscamos, por vezes exigem desvios. É que os prometidos itinerários planos, sem as armadilhas de sinuosas curvas, são às vezes o algoz do lugar que pretendemos alcançar. Convida a sensatez a não esboçar apenas precipitadas conclusões. Pois nelas se encontram os inesperados precipícios de onde não há recuo possível.


Olhas o mapa, com o emaranhado de caminhos debruados a cores diferentes: a diferença entre as estradas principais e aquelas a que fica destinado um papel secundário. Traças as bissectrizes entre o lugar onde estás e o lugar a que queres chegar. O rápido raciocínio, aquele que se edifica em cima do joelho, trata de encontrar os pontos que unem os lugares. É o itinerário que julgas ser o mais fácil, por onde a viagem se faz sem sobressaltos. Como se vogasses em mar alto, mas um mar chão pela ausência de vento que deixa as águas adormecerem no seu próprio leito acalmado. Os imponderáveis estão à espreita à medida que cavalgas na estrada que aparenta uma langorosa acalmia. Nessa altura, o caminho já não tem regresso. Podes ser apanhado no contratempo que a estrada falsamente atraente semeou no caminho, ou pode a marcha ser interrompida sem que saibas o motivo.


Sabes? É o que dá tomar decisões com o receio de que a voragem do tempo as remeta para o santuário dos arrependimentos. Quantas vezes tomas uma opção ou dizes palavras empurrado pela pressa da vida? E, depois de teres tomado as opções que tomaste, ou de teres alindado um acto com as palavras mais desastradas, que merecimento tem o arrependimento que estala, doloroso, dentro do corpo?


Toda esta urgência que toma conta de nós é das maiores adversidades que temos pela frente. A pressa em dizer as palavras que depois são as que não deviam ter sido ditas, ou a pressa em tomar uma decisão que depressa remetemos ao altar dos equívocos, é o mostruário da impaciência que nos consome. A certa altura assalta o fantasma da leviandade: e confundes a urgência das coisas, ditada pela fobia de que o tempo é sempre tão escasso, com a impaciência das decisões e das palavras que devem ser tomadas e ditas a qualquer custo. É neste contratempo que macera a angústia.


Atrás da cortina que desvenda a espessura do tempo corre a dimensão escondida das coisas. É lá que reside a pacatez das palavras ponderadas, das opções sopesadas. Detrás dessa cortina, nos interstícios do ditatorial tempo que nos aprisiona à voracidade das palavras que têm urgência em serem ditas, habitam as estradas desconhecidas onde encontras uma quietude invulgar, a insondável placidez da existência. É como se o tempo deixasse de ser escasso e a urgência em passar pelo tempo perdesse a sua prioridade. Já não haveria obrigação de dizer as palavras quando as pessoas por elas esperam. Ou de tomar as decisões quando toda a plateia espera, apressada, pela decisão.


Saberás, então, que é preferível um desvio de percurso em vez de arremeter pelo caminho mais apetecível. Terás que experimentar outras possibilidades. Testá-las num laboratório que te é dado a visitar pelos caminhos alternativos que podes percorrer na fuga à linearidade da estrada mais fácil. A sensatez não se compadece com a impaciência de tudo quereres arrebanhar ao mesmo tempo. Toma o desvio do percurso não como um desvio de percurso: toma-o como teu destino, o que cauciona um despertar de sensações que nunca conheceras, ou a visitação de lugares que seriam o manto do maior arrependimento se te mantivesses no véu da ignorância.


O saber de ti, e do universo em que vives imerso, exige o desvio de percurso como tirocínio necessário. De uma aprendizagem que nunca termina.

20.7.09

Erva daninha


As insistentes ervas daninhas. Malsãs, insinuam-se na sua aparente beleza trágica. Instalam-se junto das outras ervas. Prometem salutar convivência. A certa altura, atraiçoam o destino às outras ervas. As ardilosas daninhas agigantam-se em imparável maré. Uma nociva mancha que derrota as inocentes ervas, estas convencidas que as daninhas não eram daninhas. Só sobram as daninhas. Todas as outras, vítimas da sua sanguinária sofreguidão.


Não há nelas complacência. Nasceram para se alimentarem no espaço onde estava a restante flora. Contentar-se-iam com um canto só para elas? Seria esbarrar na natureza que lhes foi destinada: a sua função é tomar os domínios que são de outras ervas, saneá-las desses domínios, extingui-las, caso seja preciso, do mapa da flora existente. É como se fossem sórdidos conquistadores do espaço que só é vital enquanto for ocupado pelas ervas rivais. A sua sobrevivência não pactua com a existência da demais flora. São elas ou elas, daninhas e nada mais. A sublime aleivosia do monopólio da flora. Colonizadores que enquistam a sua crueldade, com um fatal veneno para a flora que fora no engodo.


Enquanto empreendem na conquista de terreno onde repousam outras ervas, congeminam-se em seus planos macabros. São prolíficas na sua multiplicação. Servem-se da reprodução vertiginosa que lhes arregimenta um numeroso exército que destitui as ervas rivais do espaço que era delas. Parece, então, que há mecanismos da natureza que provam como ela está longe da perfeição reclamada pelos adoradores do equilíbrio natural. As ervas daninhas serão a melhor expressão da impura natureza que se proclama perfeita. Só o serem consideradas daninhas explica o desequilíbrio que estas ervas provocam. Sem pesticidas ou a empenhada acção de jardineiros, se a inércia estivesse à espera da regeneradora natureza, só haveria espécies nocivas sobrepondo-se às que o não são.


As daninhas ervas são resistentes: vão aprendendo a viver do veneno que lhes dão. Nisto, uma admiração: a impressionante capacidade de aprendizagem aos ambientes hostis quando ficam à mercê de drogas que as querem exterminar. A interrogação: não são as ervas daninhas uma criação da natureza? E outra: e afinal a natureza, esta natureza na sua feição mais sombria e devastadora, não retoma o atributo da perfeição que tantos para ela reclamam? Se as daninhas ervas iludem as drogas que as querem matar, há melhor expressão de uma espécie próxima da perfeição?


Contudo, elas são a imagem tenebrosa de uma mão destruidora. Tal como se fossem cicuta ungida à medida que se arrastam na conquista de domínios. São corajosas porque avançam com a vantagem dos números. É a multiplicação avassaladora que lhes dá a vantagem. Mas é uma falsa coragem. Uma luta desigual entre exército numeroso e outras ervas que sucumbem perante o cerco mortífero. Que glória existe quando é a força bruta que leva um adversário à prostração?


Ervas daninhas. Por todo o lado. Metáforas, ou não. O pior das daninhas ervas é o sobressalto que nos provocam; à vista do desassossego, damos-lhes muita importância. Temos olhos sempre abertos para a maré de ervas daninhas que se anuncia ao longe. Deixamos de olhar para as coisas belas enquanto nos armamos contra as ervas daninhas que ameaçam. Será a melhor maneira de lhes conferir a importância que elas não mereciam. Quando damos conta, já nem sabemos a cor das boas ervas, tão afogueados com o combate desigual contra as ervas daninhas. Nessa altura, as ervas daninhas já tomaram conta da existência. Mesmo que ainda não nos tenham derrotado, no simples esquecimento de contemplar as boas ervas ecoa o princípio de derrota.


Falta saber: se algum dia as ervas daninhas forem erradicadas (num sempre temporário "por enquanto"), ainda sobrará a memória das boas ervas? Nisso, e nisso só, as ervas daninhas venceram mesmo quando julgamos que as derrotámos.

17.7.09

Enquanto houver fronteiras


Quase uma hora para entrar no Chile. De regresso a Madrid, outra demora para passar a fronteira. A passo de caracol, em filas obedientes, quando a paciência se aproxima dos limites. Para que polícias bem treinados e normalmente mal-encarados vasculhem o passaporte, digitem uns algarismos ou letras no computador, olhem para nós com ar terrivelmente desconfiado e, com ar contrafeito, carimbem o passaporte. É como se fossem eles a levantar a cancela que até então veda o acesso à terra onde queremos entrar. Muito ufanos da tremenda autoridade que repousa sobre os seus ombros.


As formalidades começam horas antes da fronteira. Ainda vamos sentados no avião e já temos que preencher papelada com os dados pessoais: nome, nacionalidade, data de nascimento, número de passaporte, morada no país que vamos visitar, e motivo de entrada no país. E se, de repente, alguém tresloucado contasse uma mentira e escrevesse, no lugar destinado às razões da visita, "terrorismo"?


É o mal da existência dos países – é a pueril conclusão a que o libertário chega. Reforça a ideia quando está na fila depois de desembarcar do avião, morto de cansaço, à espera que chegue a vez de mostrar o passaporte para ser admitido no outro lado da fronteira. Este é o zénite dos orgasmos intelectuais daqueles que têm a mente formatada para pensar o mundo como um aglomerado de países, territórios muito estanques divididos nas gavetas herméticas onde se cultiva a sacrossanta soberania. As fronteiras separam os países. Logo à entrada do país notamos a pesada nuvem da autoridade, para que nos habituemos que aquele é um país soberano e que a soberania exige muito respeito pelo comum dos mortais.


Os adoradores do soberanismo têm a ladainha na ponta da língua para contrapor os líricos desejos dos detractores de fronteiras. Dirão: não temos que tocar à campainha se queremos entrar na casa de alguém? Não é ao dono da casa que cabe abrir a porta se nos quiser acolher na sua residência? Até dirão, de peito cheio de orgulho soberanista: na comparação entre a porta de uma casa que se abre e a cancela virtual das fronteiras que se levanta à passagem dos visitantes, fecha-se mais vezes a porta da casa do que a cancela da fronteira. As fronteiras são mais liberais, rematarão, arrumando o assunto.


Talvez mais pueril do que a utopia de um mundo sem fronteiras é achar que a metáfora da porta da casa que se abre de acordo com os caprichos do proprietário arruma com os devaneios dos libertários. Um país não é uma entidade colectiva? E desde quando uma casa deixou de ser propriedade individual?


Posso ser acusado de egoísmo quando afronto a existência de fronteiras. Um país – qualquer país – goza do equivalente ao direito de admissão nos estabelecimentos comerciais. E agora que a insegurança é tão elevada, e que as ameaças fermentam do nada, os controlos de fronteiras são indispensáveis como nunca o foram. Que interessa se o viajante chega exausto de uma viagem transatlântica? Que interessa esse desconforto, se os meticulosos controlos à entrada da fronteira acabam por reverter em favor da sua própria segurança?


Não me comovo com a argumentação securitária. Já antes da ameaça terrorista indiscriminada havia controlos de fronteira. A diferença está na lupa mais zelosa que os polícias de fronteira agora usam. Até admito que me acusem de egoísmo. Prefiro chamar-lhe idealismo. Se abrirmos os olhos e tivermos discernimento para ver o que se passa no nosso umbigo – e o umbigo, aqui, é a União Europeia – não demoramos a ver que há idealismos que o deixaram de ser. Traduziram-se na realidade que passa diante dos olhos. Andamos de país para país da União Europeia e não temos que suportar fronteiras. E não nos sentimos melhor? Por não ter que suportar a antipatia arrogante de funcionários de fronteira? Por não perdermos tempo inútil com esperas demoradas para fazermos prova da identidade, e que essa identidade não é de uma criminosa figura em fuga (e por acaso algum criminoso procurado cometeria a imprudência de entrar por uma fronteira?)? Por sabermos que os países confiam uns nos outros, sinal de que as pessoas que vivem de ambos os lados da fronteira souberam cultivar um sentimento recíproco de confiança?


Este é o travo azedo das fronteiras: manifestam a eterna desconfiança que, cada vez mais me convenço (numa antítese da puerilidade libertária), é património genético da humanidade.


(Em Madrid, em trânsito)

16.7.09

A América Latina é latino-americana?


Está certo que foi apenas um cheirinho de América Latina. Santiago do Chile e uma curta viagem até à costa do Pacífico. Meia dúzia de dias. É pouco. Mas Santiago tem quase seis milhões de habitantes (mais de sessenta por cento da população do Chile); não será – e por que não usar o jargão dos politólogos que aqui se reuniram – uma "amostra representativa" da América Latina? Não chega para testar os estereótipos que dela temos?


Piora o diagnóstico quando pela lupa passaram somente duas cidades – e uma delas (Valparaíso) em meia dúzia de horas. Isto será pouco para ver o que é a América Latina, pois há muitas Américas Latinas espalhadas num continente tão grande, tão heterogéneo na sua geografia e na cultura dos povos. Mas temos ideias preconcebidas – quem as não tem? Vamos a elas.


Terei escolhido mal o laboratório para testar as impressões preconcebidas da América Latina. O Chile é dos países latino-americanos mais desenvolvidos. Santiago é uma cidade moderna, uma grande metrópole que, pelo tipo de edifícios que crescem ao alto no centro, podia ser uma cidade algures no continente norte-americano. Estranhamente, escasseiam os edifícios históricos. E digo estranhamente porque alguns (o museu de Santiago e a Catedral, por exemplo) datam de meados do século XVI. Parece que a memória histórica foi pouco preservada. Coincide com um dos estereótipos da América Latina?


Há traços da tal idiossincrasia latino-americana, ainda que ela se deva muito aos esforços da mente distorcida por imagens parcelares que nos entram pelos olhos. Há a sujidade, a muita sujidade de braço dado com a escassez de sítios onde depositar o lixo. Há aquela desorganização que povoa o imaginário, mas uma desorganização silenciosa, não tão desorganizada como idealizamos. Santiago não é uma cidade caótica onde nidifica o ruído ensurdecedor composto numa sinfonia de trânsito medonho e gente barulhenta. O metro, em hora de ponta, anda apinhado. Às vezes é difícil sair na estação que era a nossa, tal a lata de sardinhas em que as carruagens vão transformadas. Mas o metro vai estranhamente silencioso.


Os chilenos e as chilenas são muito friorentos. Aqui é inverno. De manhã, a temperatura quase chega ao ponto de congelação, convocando um bom agasalho. Mas à tarde, nos dias em que o sol rompia, punha-se uma temperatura primaveril. Mesmo assim os nativos andavam enfiados em quilos de roupa grossa, com cachecóis amarrados ao pescoço quando o termómetro visitava quase os vinte graus. Talvez seja psicológico: na sua cabeça, estão no pino do inverno. Quando andei em mangas de camisa, numa tarde ensolarada, reparei nas reacções de estranheza em algumas pessoas que se cruzavam comigo.


Por aqui há muitos "cães vadios" – é esta a expressão convencionada, não é? Suspeito que alguns tinham sido abandonados, pois vi cães de raça a vaguear em demanda de alimento. Mais nas zonas turísticas, talvez porque estão habituados a encontrar nesses lugares mão amiga que lhes sacia a fome. Às vezes cães sarnentos, quase sem pelo, só com as chagas à mostra na pele carcomida, sempre numa coçadeira aflitiva. Perante a indiferença dos transeuntes. Diria: uma convivência que me pareceu pacífica. Cães e habitantes de Santiago parecem saber ocupar os seus lugares; nestes dias não vi um só "cão vadio" a ser maltratado. Pela abundância de bichos espalhados pelas ruas do centro, que não tem comparação com o que estamos habituados, seríamos capazes de registo semelhante? Aqui está um estereótipo desfeito: por tantos cães vaguearem pelas ruas, será que não existe um sistema municipal de captura de cães? A confirmar-se, eis como um país latino-americano consegue ser mais civilizado.


O caos, o caos que pespegamos à América Latina, fui-o encontrar no gigantesco mercado de Santiago. Um labirinto, com corredores estreitos onde as pessoas se atropelam, onde se vende tudo. Não consigo descrever as condições para explicar como a higiene se ausentou daquele lugar. Se fiquei chocado? Antes pelo contrário: a higiene é conceito muito relativo. Molda-se perante as circunstâncias e os lugares que visitamos. Se aquele lugar não tivesse higiene – perguntei-me –, as autoridades já não o tinham encerrado? Este mercado seria um paraíso para a acção musculada da nossa ASAE. Aliás, desconfio que nem mil ASAE resolviam o assunto.


Para fim de conversa: os estereótipos são uma grande armadilha.


(Em Santiago do Chile)

15.7.09

Tindersticks, "All the Love"

Aqui vão umas sugestões de borla para o programa eleitoral do partido do “engenheiro”


Que é para que não digam que faço sempre pontaria para a personagem, sempre pronto a desembestar a artilharia pesada. A comiseração tem destas coisas: ficamos com o coração apertado quando diante dos olhos desfilam os desgraçados a mendigar ajuda.


Estas dicas vêm inspiradas pelo que os olhos viram numa cadeia de supermercados chilena. Ao fazerem o pagamento numa caixa, os clientes dão de caras com dois funcionários: um passa as mercadorias e regista a contabilidade dos gastos do cliente; o outro coloca as compras dentro dos sacos, dispensando os clientes dessa função tão maçadora e extenuante. O supermercado tinha, talvez, uma dezena de caixas em funcionamento. Em todas elas a gerência tinha colocado dois empregados, dois. E não é que houvesse uma enxurrada de gente a fazer compras. À espera nas filas não estavam mais do que duas ou três pessoas.


Mal vi aquilo, fui logo assombrado pela imagem do "engenheiro" – o que me levou a amaldiçoar a ida ao supermercado; tivesse trazido o creme de barba e não tinha sido assaltado pela assombração do "engenheiro" até a mais de dez mil quilómetros de casa. Desenganei-me: nem com esta distância a figura deixava de povoar os meus pensamentos. Maldita patologia.


A forma de dar a volta ao funesto episódio foi embevecer-me com o ar compungido, já nada arrogante, com que o "engenheiro" se faz passar depois do partido que comanda ter lambido as feridas de uma derrota humilhante nas eleições europeias. Lá se diz: a necessidade aguça o engenho. E de engenho entenderá o "engenheiro" – ou não houvesse aqui uma ressonância semântica entre as duas palavras. Também fui na esparrela, na mesma cilada em que, receio, uma maioria de eleitores vai cair. Lá estava eu no papel de conselheiro de imagem, ou de ideólogo do regime (que nem sei o que será pior), um pesadelo acordado, traçando as bissectrizes da estratégia eleitoral do partido do "engenheiro".


Para começo de conversa, diria, com paninhos quentes que sua excelência não gosta de ser contrariado, que também tem problemas com os números (faz lembrar um antecessor do mesmo partido). Por mais que torça os números, não há volta a dar: a grande bandeira da anterior campanha eleitoral só conseguiu provar que não passava de demagogia barata. Prometeu – diria, afiançou, que o "engenheiro" não deixa as coisas pela metade – que ia criar cento e cinquenta mil postos de trabalho. Mas nem o maior dos ilusionismos numérico o acode. Quando chegar a altura de prestar contas do mandato, terá muita gente a pedir o seu pescoço porque não soube cumprir a promessa e o desemprego subiu. De nada valerá invocar a crise em seu favor. Será obsceno se o fizer, pois o eleitorado não é tão ingénuo como parece e saberá perceber que o "engenheiro" sacode a água do capote se tudo justificar com a problemática crise.


Para tudo há solução: com o ror de hipermercados que há na terra governada pelo "engenheiro", decretava-se por lei a presença de dois funcionários em cada caixa registadora. Em homenagem a uma das vacas sagradas da pós-pós-modernidade em que já entrámos – os direitos dos consumidores, pois podem ganhar bicos de papagaio se tiverem que manobrar as compras para dentro dos sacos em que vão acamar. Porventura a lei seria mais ousada: exigiria três-funcionários-três em cada caixa registadora. O terceiro, contratado depois de passar por exigentes testes de aptidão física, teria a incumbência de levar as compras até ao automóvel dos fregueses. Não eram cento e cinquenta mil empregos que ficaríamos a dever à iluminação do "engenheiro" (enfim, ao meu rasgo; mas os conselheiros ficam sempre na sombra; os holofotes todos a recaírem sobre os artistas da companhia): por cálculos acabados de fazer em cima do joelho, seriam para aí meio milhão de novos empregos. Acabava-se o desemprego! O "engenheiro" e o seu partido (não necessariamente por esta ordem) ganhavam as eleições com uma perna às costas.


Talvez o mais difícil fosse convencer o outro engenheiro – este devidamente sem aspas, de seu nome Belmiro – a afundar na penúria. Não é que a medida tivesse condições de vingar a bem, pois o engenheiro não ia fazer a vontade ao "engenheiro". Tudo tem uma solução: na véspera das eleições, nacionalização dos hipermercados. E até a extrema-esquerda caviar se enamorava pelo "engenheiro".


(Em Santiago do Chile)

14.7.09

Um ror de alminhas nas estradas chilenas


Ou bem que no Chile a aselhice dos condutores está no auge, ou dá-se o caso de ser elevada a sinistralidade rodoviária – ou então os chilenos esmeram-se da sentida homenagem aos que partiram por causa da estrada; seja como for, nunca vi tantas alminhas em cem quilómetros de estrada. Perdi-lhes a conta (a bizarra contabilidade do número de alminhas por quilómetro de estrada…). Havia-as em curvas perigosas, a meio de longas rectas, em cruzamentos, em todos os lugares em que o acidente rivalizasse com o asfalto. Alminhas bem cuidadas: velas acesas, diligentemente limpas, ornamentadas com flores que não chegam a perder a cor e a vida à medida que o esquecimento dos familiares avança com o tempo.


Alminhas alinhadas de todos os jeitos e feitios. Pequenas e discretas, na maior parte dos casos. Mas também as havia pomposas, a reclamarem para si protagonismo e um olhar de soslaio dos viajantes que por lá passem. Não sei se a proliferação de alminhas à beira da estrada não alimenta mais proliferação de alminhas à beira da estrada: haverá condutores distraídos olhando para as alminhas, a distracção a deixar o acidente à mão de semear. Ou não: as alminhas, de tão enraizadas, já nem cativam a atenção dos nativos que por lá passam (talvez só dos néscios turistas que ficam atónitos com a profusão de alminhas).


Serão as alminhas a singela, mas sentida, homenagem que os familiares prestam a quem perdeu a vida no sanguinário asfalto. Os familiares erguem um discreto, mas pleno de significado, monumento que evoca quem naquele sítio morreu. Dir-se-á: sentida homenagem, doloroso acto o de trazer os familiares das vítimas ao local da estrada que consumiu os derradeiros instantes da vida da pessoa querida. Uma prece pungente, um acumular de dor de cada vez que os familiares visitam o simbólico mausoléu na berma da estrada. Imagino os arrepios e a dor lancinante que os consome por dentro de cada vez que corajosamente peregrinam ao traiçoeiro pedaço da estrada que testemunhou a brutalidade da subtracção da vida da pessoa querida.


É por isso que noto masoquismo na edificação de um simbólico mausoléu que é mais um a engalanar as estradas com o assustador cenário das alminhas frequentes. O mais certo é estar errado no diagnóstico – afinal, o cómodo diagnóstico de quem aprecia do exterior. Fica o diagnóstico feito na mesma. Vi as coisas por este prisma: talvez sem darem conta, os familiares que perseguem a eterna homenagem à pessoa falecida no asfalto prestam tributo – quase podia arriscar, prestam vassalagem – à estrada traiçoeira que tirou aquela pessoa da companhia dos vivos. Para a inanimada estrada, a abundante colecção de alminhas funciona como uma comenda pela perigosidade que ela encerra. Mesmo que essa perigosidade apenas se impute à distracção, ou ao desmazelo, ou apenas à incompetência de quem segura uma automóvel através do volante.


Eis o paradoxo: será inconsciente, mas quem adorna a estrada com alminhas não chora a saudade da pessoa querida que ali deixou a vida; também tece loas à estrada. Eu diria que há muita grandeza no acto. Não está ao alcance do comum dos mortais o acto humilde de prestar um tributo à assassina estrada que vai seccionando a jugular de muitas vidas. Podiam ajuramentar ódio eterno à estrada fatal, ela que levou da vida a pessoa querida. Pelo contrário: um nobilitante acto apenas ao alcance dos que não confundem humildade com humilhação. Como na retórica cristã de "dar a outra face".


As pessoas partem. O tempo, esse, avança na sua implacável caminhada. De que servia fazer juras de ódio à estrada que, no fim de contas, foi apenas o veículo que coincidiu com a morte da pessoa querida? A cultura e as idiossincrasias muito explicarão: este preceito que vem com a intensa catequização do catolicismo explicará a abundância de padres, e sobretudo de tenra idade, orgulhosamente envergando as sotainas que noutros sítios caíram em desuso?


(Em Santiago do Chile)

13.7.09

A outra ponta da meada


Não descobri nada que seja façanha. A Copérnico se deve a descoberta do planisférico planeta. Foi mais – como hei-de dizê-lo? – uma conquista pessoal. Por fim, o Pacífico. Em Valparaíso, as portas para o desconhecido Pacífico. Não é que isto valha alguma coisa, mas agora já conheço os grandes oceanos (descontados o Árctico e o Antárctico).


Foi com sofreguidão que os pés engoliram a distância entre a estação de autocarros e o sítio onde o Pacífico me aguardava. Havia como que um chamamento de outro oceano para junto de si. Lá chegado, foi como se então terminasse uma qualquer peregrinação a que não consegui atribuir sentido. Era apenas uma peregrinação que findava, outro mar com que os olhos travavam conhecimento.


Ao início, uma certa desilusão: é que afinal os mares são todos iguais. Aquele manso e imenso espelho de água podia ser retratado em qualquer local que fosse banhado por um oceano. É por isso que os simbolismos se encerram na sua própria contradição: de tantas expectativas alimentarem, quando enfim são provados o único sabor que sobra é o nada. É mito contemporâneo das artes pantagruélicas: muita elaboração, bródio muito vistoso – e não é que se continua a afirmar que "os olhos também comem"? –, mas iguarias que a nada sabem quando repousam nos braços do palato.


Subi a um promontório, num dos catorze elevadores desnivelados que trepam as escarpas. Uma imagem de conjunto: o Pacífico, hoje a fazer jus ao nome (seria apenas a ausência de vento?) a desfazer-se na embocadura do porto da cidade. Esta avidamente mergulhando na baía diante de si, como se fosse um anfiteatro que a natureza resguardou para as pessoas contemplarem a grandeza das águas azuis do Pacífico. Os olhos a deterem-se no mar, outra e demorada vez. Toda a terra deixada atrás das costas, e mais outro oceano tragado na imensidão que me separava de casa. No firmamento, até onde os olhos conseguiam alcançar na ténue linha que já confundia o mar com a bruma, o caminho para o desconhecido continente, a Ásia.


O complicado pensamento desatou em espiral. O traiçoeiro pensamento, que ergueu uma cortina opaca sobre o momento que exigia clarividência para sorver os instantes num local que por algum motivo é património mundial da humanidade. O pensamento como um novelo interminável, a desfiar-se como se fosse um filme e os olhos a tela onde a película era exibida, cheia de efabulações ininteligíveis. Teorias, umas atrás das outras, ensaiando um simbólico significado para a peregrinação que terminava nas águas mortiças do Pacífico.


Talvez o novelo seja a melhor metáfora. Os dias todos são passados a gastar o tempo na tarefa de desvendar as pontas do novelo. Uma das pontas está nas nossas mãos – mau será se nem essa estiver. É a ponta que condensa o que conhecemos, o muito ou pouco património sedimentado ao longo da existência. Vezes sem conta nos exasperamos porque não se encontram vestígios sequer da ponta sobrante. Queremos que essa ponta se solte do emaranhado que é o novelo que se agiganta à medida que correm os anos. Mas não há arte de esfacelar o novelo contra a parede, ainda que o desfalecimento provasse a consistência da ponta que falta. Se, por acaso, damos conta da ponta tão procurada, sente-se uma palpitação inerme. É quando o novelo ganha consistência de imprestável. O que outrora, antes do momento, fora considerado um feito era agora coisa banal.


Não se fecham as coisas na sua proclamada fatuidade. A peregrinação finalizada sussurrou ao ouvido a notável lição: as coisas não perecem, renovam-se quando as encontramos noutro estado. Ou de como as coisas, como as conduzimos, são uma recriação do que estava nos alvores da prostração. Reinventam-se. Através dos desconhecidos cenários que o deixam de ser assim que são provados pela avidez dos olhos.


Valparaíso; enfim, o Pacífico. Sobretudo pelo tanto que ficara emoldurado, e sem resgate possível, para trás das costas. A desilusão? Um detalhe, e contudo um muito importante detalhe que é da geografia: o retrato feito pelos olhos tinha algo de familiar. Pela rosa-dos-ventos, confirmei que também ali o sol desmaia nos hospedeiros braços de um oceano.


(Em Santiago do Chile)

The Horrors, Mirror's Image"

10.7.09

No insólito está o ganho: o Papa quer um “governo mundial”


Mete-me impressão. A igreja que teima em interferir nos assuntos terrenos, metendo o bedelho nas artes da governação. Por sinal, a modernidade manda dizer que nos tempos que lhe pertencem se convencionou dessacralizar a política. Sacristães, curas, bispos e demais prelados, que se entretenham com as dores espirituais do seu rebanho. Esse devia ser o seu universo particular. A insistência em mandar palpites sobre assuntos que cobrem toda a gente, até os que não reconhecem à igreja católica autoridade para o fazer, amarrota a igreja com o odor bafiento de uma entidade anacrónica. Já agora, a igreja não se sentiria desconfortável se um ateu perorasse sobre a organização eclesiástica?


Desta vez o papa Bento XVI lavrou encíclica que disserta sobre as dores do mundo a meio de uma profunda crise que, dizem muitos, abanou os alicerces do que conhecemos. Desconte-se algum exagero na afirmação que se segue: a encíclica podia ter saído do punho de um cultor da alter-globalização que não se notava muito a diferença. O papa embarca nas verdades que somos obrigados a reconhecer sob pena de levarmos com o rótulo de ignorantes: os mercados falharam, os governos foram forçados a admitir que deram muita rédea solta aos mercados (a agora execrável "desregulamentação"), abundou uma anti-ética dos negócios que empurrou muita gente para excessos de ganância que deram no que se vê.


Bento XVI preconiza: para grandes males há os grandes remédios. Retoma a retórica da subsidiariedade, já teorizada numa encíclica de um antecessor. De acordo com a lógica da subsidiariedade, quando os níveis inferiores de governação não oferecem soluções para os problemas que surgem pela frente, a decisão passa para os níveis superiores. A novidade não está em retomar a lógica da subsidiariedade. Está na identificação do nível desejado para oferecer as respostas eficazes para a dimensão dos problemas que sentimos: um governo mundial.


O papa não teve a ousadia de elaborar sobre os detalhes do governo mundial. O que seria o governo mundial, foi pergunta que ficou sem resposta. Porventura porque "sua santidade" não quis mexer com as sensibilidades muito encrespadas que suas excelências os países exibem no teatro das relações internacionais. O decoro da diplomacia terá impedido o papa de concretizar a ideia do "governo mundial". Mas a ideia está semeada, à espera que outros – os que detêm o poder terreno – tenham vontade de a frutificar.


Para um libertário, propostas que defendam mais governo são vistas com desconfiança. O libertário considera que já temos intervenção excessiva das autoridades públicas. Inventar um escalão superior de governação seria reforçar, e numa dimensão gigantesca, o intervencionismo público. Como a ideia vem do papa, tão dado às matérias metafísicas, não é de estranhar que a proposta tenha o remetente que teve: assim como assim, a crença na intervenção milagrosa da mão do Estado para corrigir a desordenada mão do mercado é isso mesmo, uma crença. Tão racional como a crença numa qualquer religião.


É enternecedor ver o topo da hierarquia eclesiástica de braço dado com os mentores da extrema-esquerda – esses mesmos, os que não se cansam de apregoar os malefícios do "capitalismo" e da "globalização selvagem". É comovente ver a igreja rivalizar com a extrema-esquerda chique na pretensão de deitar a mão aos gananciosos capitalistas que só pensam no lucro. Fico comovido com as preocupações sociais da igreja. Já andou mais longe o cenário em que a igreja abandona as franjas da "direita", para desgosto dos Rui Tavares deste mundo que, por conveniência pessoal, sempre gostaram de situar a igreja à "direita".


É isto que o mundo que é nosso tem de adorável: as cambalhotas que alguns dão, perfumando o mundo com um travo insólito.

9.7.09

O medo e as cobras


Pessoais fobias. A minha: répteis de toda a espécie. Mas são serpentes e crocodilos que me enchem de pânico. Foi trauma que ficou da infância. Culpa dos documentários sobre as maravilhas da natureza que passavam na televisão. Num deles, uma jibóia gigantesca deglutia lentamente um boi. À medida que o réptil metia o paquidérmico animal goela abaixo, deformando o seu cilíndrico corpo com as formas do bovino que era seu lauto manjar, o narrador informava que a digestão ia demorar largos dias.


Dias mais tarde fui de visita ao jardim zoológico de Lisboa. Havia lá um espaço dedicado aos répteis (a modernidade inventou um nome apropriado: "reptilário"). Tinha cobras de toda a espécie. Víboras perigosas, senhoras de mandíbulas que cospem um mortífero veneno - no simbolismo da indignidade de quem cospe em alguém. Anacondas com dez metros de comprimento, dotadas de uma força letal quando se abraçam à vítima, sufocando-a até à morte. Cobras albinas, feias ao quadrado. Uma imensa variedade de lagartos. Ao centro do pavilhão, lá nas profundezas estavam os lagos onde repousavam crocodilos e jacarés. Os bicharocos longos minutos inertes, com a boca entreaberta na exibição da medonha dentadura que despedaça em dois golpes o corpo das presas que acabam a vida na boca dos crocodilos.


Passei a ter pesadelos em que répteis de variada espécie me faziam companhia. Acordava em sobressalto: no pesadelo ficava à mercê de uma víbora venenosa, ou de uma anaconda enorme que se erguia das profundezas de um rio, ou de um crocodilo traiçoeiro escondido entre a vegetação pantanosa. Às vezes despertava do pesadelo em gritos e com o suor a escorrer, o coração numa cavalgada palpitação. Aprendi a temer os répteis. Passei a ter medo deles por conta dos pesadelos. Das poucas vezes que tropecei em inofensivas cobras que fazem parte da fauna indígena, fiquei paralisado de medo. E enquanto o réptil fugia da minha presença, mais assustado do que eu estava, foi das poucas vezes que senti o gelo a tomar conta das entranhas, numa paralisia medonha.


Os biólogos ensinam que os répteis são animais de sangue frio. As cobras são invertebradas. Os crocodilos são animais que tudo devem à beleza, na ausente harmonia que noutros animais traz as pessoas ao encantamento. No olhar das serpentes há uma insinuação mortífera, a sensação de que é bicho em que se não pode confiar. Rastejam, embrenham-se na vegetação selvagem à espera de apanharem as vítimas desprevenidas. Tal como os crocodilos, que ora se acoitam nas margens de um rio, ora submergem no caudal lodoso, vagarosamente, com movimentos que não deixam rasto da sua presença, até abocanharem de maneira brutal as incautas presas.


Há quem se encante com cobras, serpentes, jibóias, jacarés, crocodilos e outros répteis. Há até quem consiga ter cobras como animais de estimação. Em países árabes, há domadores de cobras – aqueles velhos que hipnotizam as serpentes que ensaiam uma caótica coreografia à medida que se destapa a tampa do cesto onde se escondem, assim que ecoam os sons da flauta soprada pelo encantador de serpentes. Na minha maneira de ver, são as pessoas mais corajosas do mundo: os encantadores de serpentes e os loucos que têm répteis em casa.


O medo, vejo-o em forma bruta quando me recordo dos pesadelos que tinha em criança, os pesadelos que metiam répteis ameaçadores pelo meio. Dizem os especialistas que os traumas podem ser ultrapassados: ora por causa da força de vontade fermentada pela mente, ora à mercê da terapia prescrita por especialistas. Durante muitos anos adiei a estreia em aviões, por causa dos abundantes pesadelos em que uma viagem de avião tinha funesto final. Ultrapassei o bloqueio. Hoje voo sem o menor temor. O que me põe a pensar se algum dia serei capaz de tocar numa serpente, ao de leve que seja, mesmo numa inofensiva serpente.


(Já não vou à ambição de copiar uns tresloucados que se deixam fotografar com uma enorme serpente enrolada ao pescoço).

8.7.09

Ditadura da coerência


Ó coerência aterradora, que esvoaças com as tuas asas de bondade que talvez o não sejam. Pois asfixiante és, coerência. Julgas-te impregnada de virtudes; em quem pousas, coerência, deixas uma impressão de – como dizê-lo? – alguma distinção. E, todavia, não passas de um espartilho que aprisiona, um cárcere onde o ar rarefeito custa a respiração. É como se tu, coerência, fosses um quarto estreito por onde o corpo deve sempre andar. Mas estreito, limitando os movimentos do corpo. Senão, virão cavernosas consciências atormentar os diabretes que desordenam a coerente linha. A incoerência sobrante aflige as dores da consciência.


Esta é daquelas coisas que se encerra no mais profundo dos paradoxos. As coisas atadas nos opostos que as deixam reféns de insanáveis contradições. Quem se pode queixar da coerência? Dizem, amiúde: que um dos males que nos flagela é a demissão da coerência; ou, ao menos, a falta de zelo para sermos exigentes ao ponto de nem sequer curarmos de não entrar em contramão com as coerentes coisas que dizemos e fazemos. E como gostamos de erguer o dedo acusador às incoerências que anotamos nos outros! Admita-se: um grotesco papel, este de juízes das incoerências que acompanham os passos alheios. O mal está quando, ainda ufanos com os deslizes da coerência dos outros, um desses deslizes se esmaga sobre a nossa cabeça.


É quando o sobressalto se faz maior. Sacerdotes da coerência (como se a coerência fosse a divindade das divindades), é o azedo sabor da incoerência que nos apanha no cadafalso que apoquenta. A dor pungente só sara com a correcção da incoerência. Vêm os pretextos, as elucubrações que manobram por esconsos corredores da ginástica argumentativa, o que seja. Só para retomar os adoráveis ladrilhos da coerência que embelezam o caminho que os nosso pés pisam. Apenas nos apaziguamos quando fazemos o luto ao lapso da incoerência.


E o que interessa sermos domados pelo estigma da coerência? Não podem as ideias mudar, ou simplesmente os estados de espírito oscilarem ao sabor das circunstâncias? E nada disso interessa para o espaço onde se acantona a coerência. A harmonia até pode não passar de um fátuo lugar que comprime a pessoal existência. Nem que a ditadura da coerência fique apenas à mercê de exigências individuais, sem nada a ligá-la a preocupações com o que outros possam julgar acerca do eu. Mesmo essa coerência fundada em interiores exigências não se desliga do espartilho que diminui a liberdade individual.


O mal de todos os males é quando nem o maior dos esforços chega para derrotar o fantasma da coerência que tanto mortifica. A certa altura, a coerência é um vício indeclinável. Nota-se o mal que a coerência faz. Até se percebe que muitas vezes a coerência não se distingue de uma doentia propensão para a monótona, rotineira maneira de levar a vida. Faltam as forças para mudar este estado de coisas. Há, quando muito, lucidez para o diagnóstico – o que já é uma conquista. Haja, até, capacidade para descobrir a terapia. O passo derradeiro, o mais importante dos passos, é o que tolhe os movimentos: por mais que se anotem as dores provocadas pelo cárcere da coerência, é nele que se persiste.


A certa altura, já nem se percebe se se trata de coerência ou apenas de teimosia. As engrenagens estão todas oleadas no habitual movimento. Domina a recusa em sequer parar para interrogar se os passos habituais são os passos melhores. O que interessa se há quem veja no esteio da coerência a maior das virtudes, se quem nela habita a sente como a armadilha que incendeia as veias? É quando apetece residir nos antípodas da habitualidade do que se é.