Argumenta João Cardoso Rosas (professor de Filosofia na Universidade do Minho) que o fantasma do salazarismo é um fardo pesado sobre as pessoas de direita. De tal forma que têm vergonha em dizer que são de direita.
Para começar em concordância com Rosas: "[é] claro que o espaço político dos regimes pluralistas é mais complexo que a visão simplificada que esta dicotomia permite: há muitas direitas e muitas esquerdas". É desta clarividência que precisamos quando alguns amadores tecem esquadria tão milimétrica entre "esquerda" e "direita". Já antes aqui o dissera: há esquerdas, no plural, como há várias direitas. Daí o profundo erro quando se faz esta arrumação tão hermética, como se afinal o pluralismo invocado não passasse de retórica.
Saio da concordância com Rosas para um rol de discordâncias. A começar com esta: sou de direita (de uma certa direita) e não tenho vergonha de o proclamar. É o problema das generalizações: são perigosas. O mal é que o artigo de João Cardoso Rosas parte em demanda de generalizações. O raciocínio ignora as excepções, que neste caso não parecem confirmar a regra. Como petição de princípio, até aceito que a vergonha em ser de direita seja ditada por mal resolvidos problemas com o longo consulado salazarista. Por cá, ser de direita é malquisto. Todavia, este argumento não explica um padrão. Por um lado, se assim fosse haveria uma condenação inter-geracional (e perene) em ser de direita. Ora a minha geração e as que vêm atrás não podem responder pelas atrocidades cometidas pelo Estado Novo. Que a ditadura tenha sido de "direita" (de extrema-direita, para ser rigoroso) não desqualifica quem não seja atraído por uma das várias esquerdas que a paisagem política oferece. E Rosas conhece opinadores e pensadores mais jovens que não têm rebuço em ser de "direita".
Por outro lado, Rosas descobriu que este pudor se estende ao nome dos principais partidos que as convenções situaram "à direita": "[a] força política situada mais à direita intitula-se partido do "Centro Democrático" e, como se isso não bastasse, também "Social", o que não anda muito longe de "socialista". O partido mais representativo da direita portuguesa (…) chama-se "Social-Democrata", ou seja, tem a designação habitual dos partidos da esquerda socialista na Europa." Não acredito que Rosas não veja para além dos limites da paróquia. Uma vista de olhos por outros partidos de direita(s): Partido Popular em Espanha, União para um Movimento Popular em França, Partido da Liberdade em Itália, União Democrata Cristã na Alemanha, Partido Conservador no Reino Unido – só para recolher uma mão cheia de exemplos. Não há em nenhum destes partidos a palavra "direita"; há, em alguns deles (Alemanha e Reino Unido), a evocação de termos que remetem para a "direita" (conservadorismo; e democracia cristã, influenciada pela doutrina social da igreja – neste caso, pegando no raciocínio de Rosas, também há tangência com socialismo?). Outra dúvida: dois desses partidos usam o termo "popular"; não é este termo, na semântica do hermetismo ideológico, referencial de "esquerda"? Por junto, como se justifica esta "vergonha" da direita europeia? Também tiveram os seus Salazares?
Já na semana anterior João Cardoso Rosas tinha escrito um texto no mesmo jornal que me deixou a macerar em dúvidas. Foi às raízes do liberalismo: "[o] liberalismo é uma ideologia de esquerda. Com poucas excepções, o liberalismo de direita é a máscara retórica do seu conservadorismo". Com uma semana de antecedência, Cardoso Rosas preparou os leitores para o argumento da vergonha da direita. Portanto: os "liberais de direita" não são genuínos liberais. O seu liberalismo é só para ocultar os fantasmas que esconderam num armário – os fantasmas do conservadorismo, pois diz-se que o conservadorismo deixou de estar na moda num mundo que já entrou em sucessivos pós-modernismos. Daí que "a esquerda liberal [seja] a melhor intérprete da protecção da liberdade assim entendida (...): a liberdade de cada um só deve ser limitada pelo dano que possa causar a outrem". E sentencia que "[q]uando a direita defende a liberdade recorre a uma interpretação muito diferente, anti-igualitária e conservadora: a liberdade estritamente limitada pelos preconceitos, pelos costumes e por instituições como a igreja estabelecida e um modelo fixo e imutável de família".
Ora, se tivesse perdido a pessoal bússola ideológica, estaria imerso numa profunda esquizofrenia. Eu, de direita, liberal até às entranhas, perante um texto que fixava azimutes tão diferentes do que conheço. Mas, lá está, o problema das generalizações é que delas depressa se soltam alçapões onde caem os seus fautores. Pois nem toda a direita é conservadora. Nem toda a direita é de sacristia. Nem toda a direita defende esse conservadorismo religioso que João Cardoso Rosas determina como sinal identitário da "direita".
Tirei destes textos três conclusões. Primeira: o que interessa se o património genético do liberalismo é de "esquerda" ou de "direita"? Segunda: acho enternecedoras as certezas absolutas que certas esquerdas apresentam, insinuando um totalitarismo intelectual que, no caso destes "liberais de esquerda", traz interrogações ao seu pensamento liberal. Terceira: considero-me de direita mais por alergia às esquerdas do que por identidade ideológica.