23.7.09

Águas turvas



Provavelmente escurecidas, as águas, pelo cansaço da claridade. Aquela claridade que trazia a nitidez das coisas aos olhos. Que desempoeirava as ideias que as coisas pontificavam na sua resplandecência. Eu digo: que nos cansamos do sossego da existência. De tempos a tempos, o corpo mergulha nas turvas águas por cansaço da bondade que visitou a vida. A digressão pela antítese das sensações que trazem reconforto é um mal necessário: só assim alcança o valor das coisas na sua claridade.


Contudo, é desagradável a deambulação pelas águas escuras e fétidas por onde o corpo loucamente arremete. Covardia não é acusação com valimento. Insensatez, porventura. Afinal, quem aposta na imprudência de vegetar nas águas que transportam o lodo viscoso que prende o corpo, e por tempo excessivo, ao seu leito desagradável?


Uma coisa é a necessidade de encontrar nas lamacentas águas depurativos predicados. Eis a paradoxal imersão no seu maior esplendor. Como é possível fazer termas – as termas que a peregrinação interior convoca – em embaciadas águas? Outra coisa é o corpo sentir-se agrilhoado pelas lamacentas águas em que quis repousar. A certa altura, a vontade perde a sua autonomia, dominada pela espessura das águas turvas onde quis macerar. Esse é o dilema: as águas turvas abraçam o corpo, manietam-no, e quando ele quer emergir em direcção às margens há uma força titânica que o prende ao caudal lodacento.


Por mais alto que gritem as saudades da claridade dos dias soalheiros e dos alegres, cristalinos regatos que descem a serrania, o espartilho das águas turvas é um tiranete que amordaça a vontade. Não são depurativas as águas turvas. São o que são: turvas, escurecidas águas, vegetando na sua inércia, essas águas que não perfumam esperança alguma. Debate-se a existência com a armadilha do arrependimento. Soam, dolorosas, as interrogações que pontuam o arrependimento: por que razão houve cansaço da claridade das coisas? Por que se inebriou a existência pela contradição da sua bondade? Imersa nas embaciadas águas, é como se tivesse abdicado da vontade, entregue aos caprichos malévolos das mortiças águas onde está aprisionada.


Só então ganha consciência do equívoco que fora mergulhar nas águas turvas. É como se tivesse dado em passo com o precipício à sua frente; as leis da física deixam sem remédio o trambolhão no vazio. Eis o maior risco da atracção, da perigosa atracção, pelas águas turvas que a certa altura estranhamente acenam com a sua fingida depurativa condição. Quando dá conta do passo em falso, que é quando os pés se atravancaram num cadafalso espinhoso, estala na boca o incendiado arrependimento de ter abandonado os dias que eram de uma resplandecência que se tornou cansativa. Mal por mal, que sobrasse esse cansaço. Ao menos era um cansaço benigno.


Ao cabo de épicos esforços, por fim o corpo liberta-se do espartilho das águas lamacentas. Sai exausto. Tisnado pela acidez das águas desmaiadas que o fizeram refém por tempo demasiado. Enfraquecido, as forças tão exangues depois do combate desigual com as fétidas águas que embaciavam os sentidos. Mas então percebe como são belas as coisas belas que a existência lhe tem para oferecer. Diria que o mergulho nas turvas águas é um mal necessário. A reeducação para suportar a frondosa paisagem que os dias claros lhe querem dedicar. Os males que chegam por bem.


O pior é se, dobrada a armadilha de umas águas lamacentas, tempos mais tarde se retoma o cansaço dos dias claros e uma súbita pulsão pelo regresso às águas turvas se apodera de tudo. As lições de outrora nada terão valido. Ou é a memória que se esbate no ténue fio do horizonte que enfraquece a espessura das aflições trazidas pelas águas turvas. Pode ser cíclico o movimento que traduz a alternância entre o conforto das sensações agradáveis e a temerária atracção pelo abismo. Ou apenas o cansaço das rotinas. Que explica o inexplicável, irracional devaneio pelas águas turvas.

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