Sem a menor ironia. Precisamos do comunismo – e de partidos comunistas ou afins – para manter o viço da democracia. Para nos lembrarmos que é tão importante a liberdade de expressão, as liberdades individuais, o direito à dissidência sem arrastar com os ossos no cárcere ou sem pagar com o elevado preço da vida, a emblemática tolerância.
O título do texto pode parecer bizarro, atendendo ao fel que já algumas vezes aqui destilei contra o comunismo (e, diga-se em meu abono, contra qualquer totalitária ideologia). E o título enverga um contexto: o pé-de-vento motivado por uma ideia do desbocado líder regional da Madeira. É curioso como no continente tantos fustigam a folclórica personagem e avisam que não a devemos levar a sério quando escorrega para a incontinência verbal; e, contudo, esses tantos caíram na esparrela que o "soba da Madeira" (assim é carinhosamente tratado pelos seus dilectos críticos) lhes preparou. Foi enternecedor ver como um coro de gente muito ofendida se atirou contra Alberto João. Entre comunistas e não comunistas ecoou um sentido protesto contra a tola ideia do madeirense. Não chegaram a perceber que aquilo não passava de uma provocação tonta. Só não entendo como andam por aí a apregoar aos quatro ventos que não se deve dar ouvidos às "imbecilidades" que o senhor da Madeira diz. Mas depois, quando lhes pisam o calo, tratam de dar valor – e muito – às palavras proferidas pela personagem. Em que ficamos?
Estou à vontade no assunto: já aqui deixei palavras que defendiam o cabimento do comunismo no nosso sistema político (apesar de a considerar ideologia execrável). Já agora, porque convivo mal com desigualdades, defendi a existência do comunismo e de qualquer outro totalitarismo. Mesmo que seja o nefando – que o é – "fascismo". O sistema político não devia dar tratamentos preferenciais a certos totalitarismos. Todos os totalitarismos têm o mesmo denominador comum: uma alergia à democracia e ao pluralismo político. Em alguns casos, essa alergia é encapotada. Noutros é ostensiva.
Em defesa da dama comunista, um extenso coro. Não vale a pena mencionar a ofensa dos comunistas: afinal eles eram os visados; e, afinal, gostam de vitimização. Mais uma oportunidade para resgatarem o passado de "resistência anti-fascista" de braço dado com o romantismo das suas vidas clandestinas. Curiosa foi a defesa de honra do comunismo feita por não comunistas (e por alguns comunistas reciclados, num regresso à teoria da reminiscência de Platão). Eis o argumento: é o contexto e as suas circunstâncias que justificam a deferência ao comunismo, por contraponto com o extremismo que exibe as saudades da ditadura salazarista.
Custa-me a entender o argumento. É como se vivêssemos numa concha fechada, totalmente hermética aos acontecimentos emoldurados na história da humanidade. Não interessa isolar o contexto e as circunstâncias que parecem admitir o comunismo como idiossincrasia pátria. Mais alto falam as atrocidades creditadas aos vários totalitarismos de que há memória. O comunismo tem a sua conta, uma conta robusta. Falta argúcia à ideia de que, no nosso contexto, o comunismo não podia ser proibido por devermos a muitos comunistas o combate à ditadura salazarista. Ontem li no Público, pela pena do degredado Avô Cantigas, a pior síntese deste argumento: "[m]eter no mesmo saco uns e outros seria misturar num mesmo julgamento político e moral os algozes e as vítimas". E o mal, comprovado, que os comunistas fizeram pelo mundo fora? E, a propósito da invocação do contexto nacional, não contam as manobras do PC para a instauração de uma "ditadura do proletariado" logo a seguir à deposição da ditadura anterior?
Sem um grama de ironia que seja, por favor deixem o comunismo em paz. O comunismo e todos os demais totalitarismos. A sua existência na paisagem política é terapêutica. Por um lado, uma bofetada de luva branca da democracia nos totalitarismos que acolhe no seu seio. Se um destes totalitarismos amesendasse no poder, teríamos a oportunidade de testemunhar a mesma tolerância? Dispenso-me da resposta. Por outro lado, os comunismos, fascismos e outras derivações totalitárias devem existir para que os democratas e os adoradores das liberdades nunca se esqueçam da antítese da democracia e do mundo repugnante que é representado pelos totalitarismos. Quantas vezes resgatamos a memória através da visita a museus que abrigam esses vestígios de forma tão viva?
Uma interrogação final: e se fosse dada a oportunidade aos comunistas caseiros para opinarem sobre a existência de partidos "fascistas"? Só para se ver como é encantador sabê-los partidários da divisa "dois pesos, duas medidas". Um hino à tolerância, é o que eles são. Proibir a sua existência é um atentando à democracia. Um gesto suicidário da própria democracia.
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