28.7.09

A partida

A gare espera pela dolorosa hora da partida. As carruagens, ainda inertes, anunciam o excruciante momento em que deixam de ser ver – quando ele, à janela, acenar na direcção dela, à medida que ela se perde num vulto pequeno a dizer-lhe adeus. Aqueles minutos até o relógio gritar a partida do comboio, aproveitados em toda a sua intensidade. Como se entre os segundos não houvesse pausas. Nem sequer desaproveitassem o tempo para respirar. Todos os segundos sorvidos na exaustão de uma despedida que não queriam que estivesse a acontecer. Parecia que nunca mais se voltavam a ver.


Beijavam-se, uma e outra vez. Perdiam-se em afagos. Creio que faziam juras – daquelas melodias cheias de violinos, ecoando as juras de amor eterno que esgotam a sua perenidade quando são feitas. Contavam os minutos em retrocesso enquanto se entregavam a demorados abraços onde os seus corpos se fundiam no aperto do abraço tangente ao aperto do coração que os consumia. Parecia que os dias acabavam nesse dia.


À distância, julguei ver os seus olhos marejados depois de ele sussurrar meia dúzia de palavras sentidas ao ouvido dela. Ele limpou uma lágrima furtiva que teimava em deslizar pelo seu rosto empalidecido pelas saudades ainda extemporâneas. Nisto, fitaram o horizonte, deixaram que os seus olhos se perdessem na vastidão ausente do horizonte. Acreditaram que nessa contemplação conseguiam parar os ponteiros do relógio – ou, pelo menos, assim ditar o desejado retardamento da partida do comboio. Haveria um qualquer motivo para atrasar o horário do comboio. Nunca um atraso na partida tão apetecido. De repente, parecia que todo o tempo se enclausurara no horizonte plúmbeo diante dos seus então aquietados olhos, ou os ponteiros do relógio subitamente cessando a sua marcha.


Nesse êxtase, toda a sua cumplicidade desfilou diante dos olhos. Porventura não em compasso, os amantes ali a reviverem os diferentes instantes que emolduraram nas suas memórias. Os dedos das mãos, entrelaçados, escondiam o frio que as saudades antes do tempo ditavam. Parecia que a despedida consumia os dias seguintes, como se sentissem já órfãos pela tão pungente ausência.


Enfim, despertaram do momentâneo sonho acordado a que se entregaram. Olharam para o relógio da estação e resignaram-se à contagem decrescente até que a voz mecânica que anunciava partidas e chegadas sentenciasse a partida. Em lágrimas, ela pediu-lhe que não entrasse no comboio. Que fugissem os dois da cidade, sem destino, sem se amedrontarem com o que estivesse para vir por causa dos compromissos cerceados. Queria que se entregasse, como se todo o mundo fosse composto só por eles. Ele enxugou-lhe as lágrimas e com a resposta cravou-lhe, fundo, o punhal da decepção. Não podia. Por mais que quisesse, não podia – ou, porventura, não queria tanto. Parecia que o mundo desabava em cima das suas cabeças: a dele, pela resposta que acabara de dar; a dela, pelas palavras que acabara de ouvir.


Escutaram, enfim, o chamamento envenenado da mecânica voz feminina que anuncia as partidas de comboios. A partida iminente acelerava a despedida. Num assomo de coragem, ela reprimiu as lágrimas e ele encontrou forças para deixar de ter os olhos marejados. Renovaram as juras que são tão eternas como o instante que se consumia no momento em que se ajuramentavam. Escorregaram para o óbvio: a mortificação que a ausência ia fermentar, as imensas saudades que seriam assegurada razão para insónias. O último beijo, já não tão lânguido. Um derradeiro abraço, o pretexto para eternizar o odor dos seus corpos só para atenuar a ausência que os iria consumir.


Parecia, com a partida tão dramatizada, que jamais se voltariam a ver. Ao menos ficariam, perenes, aqueles intensos instantes da partida. Ao menos teria essa serventia, a partida. Mesmo que nunca mais houvesse tempo destinado a eles.

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