8.7.09

Ditadura da coerência


Ó coerência aterradora, que esvoaças com as tuas asas de bondade que talvez o não sejam. Pois asfixiante és, coerência. Julgas-te impregnada de virtudes; em quem pousas, coerência, deixas uma impressão de – como dizê-lo? – alguma distinção. E, todavia, não passas de um espartilho que aprisiona, um cárcere onde o ar rarefeito custa a respiração. É como se tu, coerência, fosses um quarto estreito por onde o corpo deve sempre andar. Mas estreito, limitando os movimentos do corpo. Senão, virão cavernosas consciências atormentar os diabretes que desordenam a coerente linha. A incoerência sobrante aflige as dores da consciência.


Esta é daquelas coisas que se encerra no mais profundo dos paradoxos. As coisas atadas nos opostos que as deixam reféns de insanáveis contradições. Quem se pode queixar da coerência? Dizem, amiúde: que um dos males que nos flagela é a demissão da coerência; ou, ao menos, a falta de zelo para sermos exigentes ao ponto de nem sequer curarmos de não entrar em contramão com as coerentes coisas que dizemos e fazemos. E como gostamos de erguer o dedo acusador às incoerências que anotamos nos outros! Admita-se: um grotesco papel, este de juízes das incoerências que acompanham os passos alheios. O mal está quando, ainda ufanos com os deslizes da coerência dos outros, um desses deslizes se esmaga sobre a nossa cabeça.


É quando o sobressalto se faz maior. Sacerdotes da coerência (como se a coerência fosse a divindade das divindades), é o azedo sabor da incoerência que nos apanha no cadafalso que apoquenta. A dor pungente só sara com a correcção da incoerência. Vêm os pretextos, as elucubrações que manobram por esconsos corredores da ginástica argumentativa, o que seja. Só para retomar os adoráveis ladrilhos da coerência que embelezam o caminho que os nosso pés pisam. Apenas nos apaziguamos quando fazemos o luto ao lapso da incoerência.


E o que interessa sermos domados pelo estigma da coerência? Não podem as ideias mudar, ou simplesmente os estados de espírito oscilarem ao sabor das circunstâncias? E nada disso interessa para o espaço onde se acantona a coerência. A harmonia até pode não passar de um fátuo lugar que comprime a pessoal existência. Nem que a ditadura da coerência fique apenas à mercê de exigências individuais, sem nada a ligá-la a preocupações com o que outros possam julgar acerca do eu. Mesmo essa coerência fundada em interiores exigências não se desliga do espartilho que diminui a liberdade individual.


O mal de todos os males é quando nem o maior dos esforços chega para derrotar o fantasma da coerência que tanto mortifica. A certa altura, a coerência é um vício indeclinável. Nota-se o mal que a coerência faz. Até se percebe que muitas vezes a coerência não se distingue de uma doentia propensão para a monótona, rotineira maneira de levar a vida. Faltam as forças para mudar este estado de coisas. Há, quando muito, lucidez para o diagnóstico – o que já é uma conquista. Haja, até, capacidade para descobrir a terapia. O passo derradeiro, o mais importante dos passos, é o que tolhe os movimentos: por mais que se anotem as dores provocadas pelo cárcere da coerência, é nele que se persiste.


A certa altura, já nem se percebe se se trata de coerência ou apenas de teimosia. As engrenagens estão todas oleadas no habitual movimento. Domina a recusa em sequer parar para interrogar se os passos habituais são os passos melhores. O que interessa se há quem veja no esteio da coerência a maior das virtudes, se quem nela habita a sente como a armadilha que incendeia as veias? É quando apetece residir nos antípodas da habitualidade do que se é.

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