14.7.09

Um ror de alminhas nas estradas chilenas


Ou bem que no Chile a aselhice dos condutores está no auge, ou dá-se o caso de ser elevada a sinistralidade rodoviária – ou então os chilenos esmeram-se da sentida homenagem aos que partiram por causa da estrada; seja como for, nunca vi tantas alminhas em cem quilómetros de estrada. Perdi-lhes a conta (a bizarra contabilidade do número de alminhas por quilómetro de estrada…). Havia-as em curvas perigosas, a meio de longas rectas, em cruzamentos, em todos os lugares em que o acidente rivalizasse com o asfalto. Alminhas bem cuidadas: velas acesas, diligentemente limpas, ornamentadas com flores que não chegam a perder a cor e a vida à medida que o esquecimento dos familiares avança com o tempo.


Alminhas alinhadas de todos os jeitos e feitios. Pequenas e discretas, na maior parte dos casos. Mas também as havia pomposas, a reclamarem para si protagonismo e um olhar de soslaio dos viajantes que por lá passem. Não sei se a proliferação de alminhas à beira da estrada não alimenta mais proliferação de alminhas à beira da estrada: haverá condutores distraídos olhando para as alminhas, a distracção a deixar o acidente à mão de semear. Ou não: as alminhas, de tão enraizadas, já nem cativam a atenção dos nativos que por lá passam (talvez só dos néscios turistas que ficam atónitos com a profusão de alminhas).


Serão as alminhas a singela, mas sentida, homenagem que os familiares prestam a quem perdeu a vida no sanguinário asfalto. Os familiares erguem um discreto, mas pleno de significado, monumento que evoca quem naquele sítio morreu. Dir-se-á: sentida homenagem, doloroso acto o de trazer os familiares das vítimas ao local da estrada que consumiu os derradeiros instantes da vida da pessoa querida. Uma prece pungente, um acumular de dor de cada vez que os familiares visitam o simbólico mausoléu na berma da estrada. Imagino os arrepios e a dor lancinante que os consome por dentro de cada vez que corajosamente peregrinam ao traiçoeiro pedaço da estrada que testemunhou a brutalidade da subtracção da vida da pessoa querida.


É por isso que noto masoquismo na edificação de um simbólico mausoléu que é mais um a engalanar as estradas com o assustador cenário das alminhas frequentes. O mais certo é estar errado no diagnóstico – afinal, o cómodo diagnóstico de quem aprecia do exterior. Fica o diagnóstico feito na mesma. Vi as coisas por este prisma: talvez sem darem conta, os familiares que perseguem a eterna homenagem à pessoa falecida no asfalto prestam tributo – quase podia arriscar, prestam vassalagem – à estrada traiçoeira que tirou aquela pessoa da companhia dos vivos. Para a inanimada estrada, a abundante colecção de alminhas funciona como uma comenda pela perigosidade que ela encerra. Mesmo que essa perigosidade apenas se impute à distracção, ou ao desmazelo, ou apenas à incompetência de quem segura uma automóvel através do volante.


Eis o paradoxo: será inconsciente, mas quem adorna a estrada com alminhas não chora a saudade da pessoa querida que ali deixou a vida; também tece loas à estrada. Eu diria que há muita grandeza no acto. Não está ao alcance do comum dos mortais o acto humilde de prestar um tributo à assassina estrada que vai seccionando a jugular de muitas vidas. Podiam ajuramentar ódio eterno à estrada fatal, ela que levou da vida a pessoa querida. Pelo contrário: um nobilitante acto apenas ao alcance dos que não confundem humildade com humilhação. Como na retórica cristã de "dar a outra face".


As pessoas partem. O tempo, esse, avança na sua implacável caminhada. De que servia fazer juras de ódio à estrada que, no fim de contas, foi apenas o veículo que coincidiu com a morte da pessoa querida? A cultura e as idiossincrasias muito explicarão: este preceito que vem com a intensa catequização do catolicismo explicará a abundância de padres, e sobretudo de tenra idade, orgulhosamente envergando as sotainas que noutros sítios caíram em desuso?


(Em Santiago do Chile)

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