Pessoais fobias. A minha: répteis de toda a espécie. Mas são serpentes e crocodilos que me enchem de pânico. Foi trauma que ficou da infância. Culpa dos documentários sobre as maravilhas da natureza que passavam na televisão. Num deles, uma jibóia gigantesca deglutia lentamente um boi. À medida que o réptil metia o paquidérmico animal goela abaixo, deformando o seu cilíndrico corpo com as formas do bovino que era seu lauto manjar, o narrador informava que a digestão ia demorar largos dias.
Dias mais tarde fui de visita ao jardim zoológico de Lisboa. Havia lá um espaço dedicado aos répteis (a modernidade inventou um nome apropriado: "reptilário"). Tinha cobras de toda a espécie. Víboras perigosas, senhoras de mandíbulas que cospem um mortífero veneno - no simbolismo da indignidade de quem cospe em alguém. Anacondas com dez metros de comprimento, dotadas de uma força letal quando se abraçam à vítima, sufocando-a até à morte. Cobras albinas, feias ao quadrado. Uma imensa variedade de lagartos. Ao centro do pavilhão, lá nas profundezas estavam os lagos onde repousavam crocodilos e jacarés. Os bicharocos longos minutos inertes, com a boca entreaberta na exibição da medonha dentadura que despedaça em dois golpes o corpo das presas que acabam a vida na boca dos crocodilos.
Passei a ter pesadelos em que répteis de variada espécie me faziam companhia. Acordava em sobressalto: no pesadelo ficava à mercê de uma víbora venenosa, ou de uma anaconda enorme que se erguia das profundezas de um rio, ou de um crocodilo traiçoeiro escondido entre a vegetação pantanosa. Às vezes despertava do pesadelo em gritos e com o suor a escorrer, o coração numa cavalgada palpitação. Aprendi a temer os répteis. Passei a ter medo deles por conta dos pesadelos. Das poucas vezes que tropecei em inofensivas cobras que fazem parte da fauna indígena, fiquei paralisado de medo. E enquanto o réptil fugia da minha presença, mais assustado do que eu estava, foi das poucas vezes que senti o gelo a tomar conta das entranhas, numa paralisia medonha.
Os biólogos ensinam que os répteis são animais de sangue frio. As cobras são invertebradas. Os crocodilos são animais que tudo devem à beleza, na ausente harmonia que noutros animais traz as pessoas ao encantamento. No olhar das serpentes há uma insinuação mortífera, a sensação de que é bicho em que se não pode confiar. Rastejam, embrenham-se na vegetação selvagem à espera de apanharem as vítimas desprevenidas. Tal como os crocodilos, que ora se acoitam nas margens de um rio, ora submergem no caudal lodoso, vagarosamente, com movimentos que não deixam rasto da sua presença, até abocanharem de maneira brutal as incautas presas.
Há quem se encante com cobras, serpentes, jibóias, jacarés, crocodilos e outros répteis. Há até quem consiga ter cobras como animais de estimação. Em países árabes, há domadores de cobras – aqueles velhos que hipnotizam as serpentes que ensaiam uma caótica coreografia à medida que se destapa a tampa do cesto onde se escondem, assim que ecoam os sons da flauta soprada pelo encantador de serpentes. Na minha maneira de ver, são as pessoas mais corajosas do mundo: os encantadores de serpentes e os loucos que têm répteis em casa.
O medo, vejo-o em forma bruta quando me recordo dos pesadelos que tinha em criança, os pesadelos que metiam répteis ameaçadores pelo meio. Dizem os especialistas que os traumas podem ser ultrapassados: ora por causa da força de vontade fermentada pela mente, ora à mercê da terapia prescrita por especialistas. Durante muitos anos adiei a estreia em aviões, por causa dos abundantes pesadelos em que uma viagem de avião tinha funesto final. Ultrapassei o bloqueio. Hoje voo sem o menor temor. O que me põe a pensar se algum dia serei capaz de tocar numa serpente, ao de leve que seja, mesmo numa inofensiva serpente.
(Já não vou à ambição de copiar uns tresloucados que se deixam fotografar com uma enorme serpente enrolada ao pescoço).
1 comentário:
Também eu tenho um imenso pavor de répteis! Fui criada numa localidade perdida entre as Serras de Aire, eu e o meu grupo de amigos costumávamos brincar naquelas matas onde abundavam pedras, carrascos e a mais diversa bicharada. No maciço calcário que caracteriza estas serras, não faltam pequenas grutas e algares que se prolongam pelas profundezas da terra. Pois uma das minhas brincadeiras favoritas era, precisamente, enfiar-me por aqueles buracos adentro, fazendo de conta que era uma exploradora, sem que, contudo, me lembrasse que poderiam estar infestados pelos bicharocos que tanto temia! Não me recordo de alguma vez ter tido qualquer susto, quando levava a cabo estas minhas explorações. Mas, à superfície, apanhei bastantes! Quantas vezes ao dar de caras com uma cobra, o coração me caiu aos pés e desatei a fugir para um lado e a cobra para outro! Fugíamos ambas, cada uma com mais medo da outra! Quantas vezes, pé ante pé, retornava ao local,aonde tinha avistado a cobra, para, mais uma vez, poder sentir aquela sensação de pavor, que tanto fascínio exercia sobre mim! Gostava de sentir medo! E se necessário fosse, tornava a fugir, mas agora com menos ímpeto! Já não havia o impacto da surpresa...
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