Vamos para longe e a cabeça parece que se refresca. Será a predisposição para conhecer o desconhecido, a vontade de embeber numa cultura diferente – ou, talvez, pela distância e através da temporária visita, para se ser diferente do que se é na nativa terra. Uma das vantagens de viajar é que estamos abertos a fazer coisas, a ver coisas, à experimentação do que nos recusaríamos a fazer em casa.
Quem estaria disposto a comer tubarão mergulhado numa saborosa mistela de mariscos e afins? Ou a beber leite de burra acabado de mungir e servido em copos que ficam a dever à higiene a que estamos habituados? Quem aceitaria ingerir uma espécie autóctone de tarântula misturada no meio de uma salada? Quem teria estofo para tolerar a imundície que toma conta de certos lugares a que se convencionou chamar "subdesenvolvidos"? Alguém aceitaria almoçar no chão e reparar que à sua frente estava um prato, um copo e um guardanapo – nada de talheres? São, respectivamente, polaróides de Santiago do Chile (os dois primeiros), das Seychelles, de Bratislava, de algures no meio de um deserto na Tunísia. (E, retomando o texto de quarta-feira da semana passada, outra interrogação – em jeito de provocação – aos cultores da ideologia em apreço: teriam estômago para visitar o museu do comunismo em Praga?)
Não há melhor maneira de crescer (partindo do pressuposto que podemos sempre crescer com o que aprendemos ao longo de uma vida inteira). É viajando. Conhecer todos os pedaços do mundo que as viagens possam trazer aos nossos olhos. Às vezes, abdicar de preconceitos que foram em nós fermentando à medida que se enraizava uma maneira de ser e de estar que é muito "local", que em muito sedimenta uma pertença. Nunca como lá fora as barreiras mentais amolecem para deixar entrar hábitos locais que seriam terminantemente rejeitados em casa. Pisar chão desconhecido rebenta com os depósitos de oxigénio que teimamos em manter encerrados enquanto andamos por casa. E os olhos conseguem ver de maneira diferente, talvez embriagados pela vertigem dos novos lugares por conhecer, ali mesmo defronte dos olhos sedentos.
É quando, já na temperada rotina do lugar de sempre, estala uma impertinente dúvida: a apetência para ver e ser diferente será apenas a excitação pelo desconhecido, como se fosse uma injecção que anestesia da essência que somos (ou que, pelo menos, de nós conhecemos)? Nessa altura, já manietados pelo que julgamos ser a nossa "normalidade", irrompem as perguntas incómodas. Num suicidário devaneio que esbate as memórias dos sítios desconhecidos que o deixaram de ser mercê de uma viagem. É uma difícil dialéctica: entre a pomposa, rotineira "normalidade" dos dias correntes passados na terra a que nos convenceram pertencermos; e a libertária experimentação dos lugares desconhecidos, que adicionam lastro de crescimento interior. Quando a primeira se sobrepõe à segunda, ajuda o tempo que se esfuma a adormecer as memórias trazidas de lugares distantes. A utilidade da viagem parece consumir-se no tempo que lhe sucedeu. Do lugar distante sobram apenas umas nebulosas ruínas na memória.
É nestas alturas que cresce o sonho – o irrealizável sonho – de ser ininterrupto viajante. Pois o mal é que regressamos a casa (e não há aqui negação da casa que é pertença estabelecida). O maior mal de todos é que não se aprende nada com a aprendizagem que o desconhecido sítio trouxe. A faca cruenta que se espeta fundo no dorso é o que já sabemos: as viagens são sempre temporárias. O que é dolorosamente duradouro é pertencermos a um lugar. Ao lugar de onde saímos quando a sede de conhecer outros lugares investe, furiosa.
Daí a interrogação: o encantamento pelas viagens e pelos lugares por conhecer não será uma dissimulada negação de pertença?
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