Não descobri nada que seja façanha. A Copérnico se deve a descoberta do planisférico planeta. Foi mais – como hei-de dizê-lo? – uma conquista pessoal. Por fim, o Pacífico. Em Valparaíso, as portas para o desconhecido Pacífico. Não é que isto valha alguma coisa, mas agora já conheço os grandes oceanos (descontados o Árctico e o Antárctico).
Foi com sofreguidão que os pés engoliram a distância entre a estação de autocarros e o sítio onde o Pacífico me aguardava. Havia como que um chamamento de outro oceano para junto de si. Lá chegado, foi como se então terminasse uma qualquer peregrinação a que não consegui atribuir sentido. Era apenas uma peregrinação que findava, outro mar com que os olhos travavam conhecimento.
Ao início, uma certa desilusão: é que afinal os mares são todos iguais. Aquele manso e imenso espelho de água podia ser retratado em qualquer local que fosse banhado por um oceano. É por isso que os simbolismos se encerram na sua própria contradição: de tantas expectativas alimentarem, quando enfim são provados o único sabor que sobra é o nada. É mito contemporâneo das artes pantagruélicas: muita elaboração, bródio muito vistoso – e não é que se continua a afirmar que "os olhos também comem"? –, mas iguarias que a nada sabem quando repousam nos braços do palato.
Subi a um promontório, num dos catorze elevadores desnivelados que trepam as escarpas. Uma imagem de conjunto: o Pacífico, hoje a fazer jus ao nome (seria apenas a ausência de vento?) a desfazer-se na embocadura do porto da cidade. Esta avidamente mergulhando na baía diante de si, como se fosse um anfiteatro que a natureza resguardou para as pessoas contemplarem a grandeza das águas azuis do Pacífico. Os olhos a deterem-se no mar, outra e demorada vez. Toda a terra deixada atrás das costas, e mais outro oceano tragado na imensidão que me separava de casa. No firmamento, até onde os olhos conseguiam alcançar na ténue linha que já confundia o mar com a bruma, o caminho para o desconhecido continente, a Ásia.
O complicado pensamento desatou em espiral. O traiçoeiro pensamento, que ergueu uma cortina opaca sobre o momento que exigia clarividência para sorver os instantes num local que por algum motivo é património mundial da humanidade. O pensamento como um novelo interminável, a desfiar-se como se fosse um filme e os olhos a tela onde a película era exibida, cheia de efabulações ininteligíveis. Teorias, umas atrás das outras, ensaiando um simbólico significado para a peregrinação que terminava nas águas mortiças do Pacífico.
Talvez o novelo seja a melhor metáfora. Os dias todos são passados a gastar o tempo na tarefa de desvendar as pontas do novelo. Uma das pontas está nas nossas mãos – mau será se nem essa estiver. É a ponta que condensa o que conhecemos, o muito ou pouco património sedimentado ao longo da existência. Vezes sem conta nos exasperamos porque não se encontram vestígios sequer da ponta sobrante. Queremos que essa ponta se solte do emaranhado que é o novelo que se agiganta à medida que correm os anos. Mas não há arte de esfacelar o novelo contra a parede, ainda que o desfalecimento provasse a consistência da ponta que falta. Se, por acaso, damos conta da ponta tão procurada, sente-se uma palpitação inerme. É quando o novelo ganha consistência de imprestável. O que outrora, antes do momento, fora considerado um feito era agora coisa banal.
Não se fecham as coisas na sua proclamada fatuidade. A peregrinação finalizada sussurrou ao ouvido a notável lição: as coisas não perecem, renovam-se quando as encontramos noutro estado. Ou de como as coisas, como as conduzimos, são uma recriação do que estava nos alvores da prostração. Reinventam-se. Através dos desconhecidos cenários que o deixam de ser assim que são provados pela avidez dos olhos.
Valparaíso; enfim, o Pacífico. Sobretudo pelo tanto que ficara emoldurado, e sem resgate possível, para trás das costas. A desilusão? Um detalhe, e contudo um muito importante detalhe que é da geografia: o retrato feito pelos olhos tinha algo de familiar. Pela rosa-dos-ventos, confirmei que também ali o sol desmaia nos hospedeiros braços de um oceano.
(Em Santiago do Chile)
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