27.10.09

Deus é mau (versão Saramago), ou deus nem sequer existe (versão do ateu)?



Tinha jurado que não escrevia uma palavra sobre esta polémica abstrusa. Mas ao ver a recrudescência das hostilidades entre o escritor e os que do lado cristão ficaram ofendidos, não tive como reprimir as palavras que iam e vinham na minha cabeça. Parto desta interrogação: se um ateu é ateu, como pode garantir que deus é uma malévola entidade? Não se trata da negação do principal enunciado de um ateu?

Já muitos iluminados descobriram que o azedume de Saramago não será genuíno. É um azedume oportuno agora que o escritor publicou um novo livro. Dizem os iluminados, lambendo os beiços de satisfação, tal como se tivessem alambazado uma iguaria rara: o comunista que tanto se insurge contra o capitalismo, agora rendido às maravilhas e, sobretudo, às grotescas técnicas de publicidade barata que são apanágio do odioso capitalismo. Não contesto os iluminados, mas já há muitos anos que aprendi a conviver com comunistas que mantêm uma relação afectuosa, diria incestuosa, com o vil metal. Conheço alguns que amaldiçoam o capitalismo mas exibem sinais de riqueza que não coincidem com as inflamadas prédicas que o renegam.

Por falar em prédicas, as de Saramago contra a bíblia, o cristianismo e os cristãos que insistam numa leitura bondosa da bíblia são rançosas. Os assuntos mal resolvidos entre o escritor e o cristianismo não são novidade. Ressurgem à superfície quando um novo livro entra no mercado editorial. Só consigo encontrar duas explicações para a maneira assanhada como Saramago se atira aos cristãos e a deus: ou se trata apenas de uma manhosa estratégia de marketing para atrair os incréus ao livro, ou é uma camisa de sete varas que aprisiona o escritor num passado mal resolvido com a igreja.

No primeiro caso, é um lamentável equívoco de Saramago e da editora: mau sinal se precisam de detonar uma polémica parasita só para atirar as vendas para a estratosfera. Pode-se inferir que a editora e o escritor não estavam convencidos da qualidade da obra e suspeitavam que ela podia ser um fracasso? Ora, pensava que qualquer coisa que fosse escrita por Saramago tinha à partida a chancela da qualidade, independentemente de se olhar de forma descomprometida para o conteúdo da obra. Consta que a editora e Saramago não acreditaram nesse predicado mágico das obras com a assinatura de quem foi Nobel da literatura.

Levanta-se a segunda hipótese – assuntos mal resolvidos com a religião – e entramos no terreno da metafísica, um terreno minado. É aqui que um ateu se sente incomodado com a abordagem desastrada de Saramago. Interessa debater deus, se para um ateu deus não existe? Quando li que Saramago notificou más recomendações sobre deus, compreendi que afinal não é ateu; está decepcionado com deus, gostaria que deus fosse diferente (provavelmente, comunista). Este é o desconforto para o ateu: é uma discussão inútil em que um ateu dá trunfos aos crentes. Daqui não hesito em o afirmar: mau grado a posição intelectual que estimula a discussão aberta com quem tenha ideias diferentes, o terreno da metafísica é um lodaçal onde os ateus se afogam sem indulgência. Por acaso, os cristãos (com os católicos à cabeça) reagiram de forma desabrida. A histeria tornou-os algozes do trunfo que Saramago tinha oferecido em bandeja de ouro.

O que sobra desta polémica insignificante (para além de outro best seller no currículo do escritor)? Isto: ateus fundamentalistas do anti-clericalismo e crentes de deus sem capacidade de encaixe para a crítica merecem-se uns aos outros.

Afinal caí na ratoeira. Ou quase: não embarquei na manobra de marketing do escritor e da editora, pois o estilo não cativa. Não serei daqueles que se atiram furiosamente ao novo livro sem o ter lido, mas não darei o meu contributo para os fartos réditos de Saramago. Todavia, fui apanhado numa tempestade que queria evitar: afinal, se a polémica era abstrusa, de uma inutilidade circundante, por que motivo acabei por escrever sobre ela? Talvez para terminar com esta sedição contra os falsos ateus: para um ateu, deus não existe. Não é nem mau nem bom, não tem características. Não existe.

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