29.10.09

Teen spirit



A maturidade traz-nos distanciamento das desbarbadas manifestações da juventude. Olhamo-las com desdém – e um pouco de reprimida inveja, que se admita. A propensão para o diálogo de surdos entre as gerações é congénita. É como se, com o tempo que sedimenta a madura idade, as memórias pessoais se varressem. Só para podermos desprezar do que julgamos ser a imbecilidade dos mais novos.

Talvez seja um truque para o convencimento de que não nos calhou em sorte sermos imbecis na tenra idade. Alguns admitem que tiveram os seus devaneios adolescentes. Logo a seguir rectificam os temperos: as parvoíces de agora parecem-se pueris com as que tivemos quando foi a nossa adolescência. As gerações que chegam à idade em que todas as loucuras são auto-permitidas merecem a reprovação dos que por lá andaram. É por isso que eu digo que uma pitada de inveja não se apaga do diagnóstico impiedoso dos mais velhos.

Por mais absurdos que sejam os modismos, por mais insuportáveis que sejam certos actos juvenis, não os considero assim. Entretenho-me a apreciar a volatilidade das modas. E a criatividade das gerações que andam pela adolescência, só para perceber o rasgo inventivo que delas se apodera quando nos mostram uma particular dose de loucura juvenil. O que me aborrece é a sobranceria dos mais velhos quando apoucam os adolescentes empenhados na imbecilidade.

A loucura que toma conta da madura idade é a inércia, a acomodação, a verberação dos actos dos imberbes que nos soam a disparate pegado, as cólicas mentais quando os mais novos desfilam embebidos em patetice (ou pelo que julgamos serem patéticas figuras). Quando isso acontece, começou a curva descendente. Ela até pode ter desembainhado o seu lugar; o que não consigo admitir é que o seu declive seja mais acentuado porque nos prestamos à modorra. Um sinal visível deste diagnóstico é aquela expressão que mistura reprovação com comiseração quando nos passam à frente dos olhos adolescentes em – julgamos – "tristes figuras". Aconselho o seguinte (para impedir que a curva descendente empine perigosamente): quando soar a tentação de flagelar os ensandecidos adolescentes, reprima-se a vontade; puxemos, então, pela memória. Só para compulsar episódios em que a nossa adolescência regurgitou o que hoje julgaríamos ser impossível fazer ou dizer.

Quem não fez asneiras impensadas, tão próprias da ligeireza típica da adolescente idade? Não trouxeram divertimento? O divertimento cerceia o amadurecimento? Esse terrível amadurecimento que os anos imparáveis trazem e, ele sim, indispõe para a diversão. Ainda hoje não consigo reprimir uma gargalhada quando recordo o que fizemos, metidos na vara da adolescência, naquele dia em que assomou a frustração porque a bola com que jogávamos foi para a estrada e rebentou atropelada por um carro. A saudável frustração deu-nos para meter um paralelepípedo dentro da bola. Simulámos que alguém tinha acabado de a chutar para bem longe, junto da paragem do autocarro. À espera da primeira vítima que saísse do autocarro e quisesse ser simpático, devolvendo a bola. Azar nosso: foi um dos velhotes vizinhos mais simpáticos que por lá havia. Ficámos sem voz quando o vimos, entusiasmado, a ganhar lanço para pontapear a bola. Já só tivemos tempo de ouvir o grito de dor. E de fugir depressa. O homem só ficou com um hematoma no pé. Uns dias depois já nem se lembrava da tropelia que não era para ele mas que o vitimou. E nós? Rimo-nos como loucos.

A melhor travessura de que me recordo via-a num filme italiano da década de setenta. Uma maldade tipicamente juvenil, mas praticada por um grupo de amigos já entrados na madura idade. Iam para a estação de comboio, à espera que a composição partisse do cais. Só para esbofetearem os passageiros que, saudosos pela partida do comboio, espreitavam pela janela enquanto o comboio abalava.

É desta adolescência mergulhada na madura idade que precisamos.

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