15.10.09

A gente empoeirada



Uma actriz brasileira pegou numa câmara de filmar e, em registo íntimo, satirizou a portugalidade. Logo se pôs um pé-de-vento, muita gente ofendida a atirar-se com violência ao topete que diminuía a portugalidade. Pode-se lá admitir que um brasileiro qualquer ponha os pés na nossa terra e destile fina ironia sobre os patrióticos defeitos que se põem a jeito da risada dos outros. Isto só não chegou a incidente diplomático porque estamos sem ministro dos negócios estrangeiros.

A tempestade trepou até chegar a furacão. Muita gente indignada a escrever palavras sentidas um pouco por todo o lado. Alguns mariolas juraram vingança; terá sido por acaso que a página que a actriz alojou na Internet foi vandalizada e que a biografia colocada em rede a apresenta como actriz pornográfica? O pateta do regime (um Markl qualquer que se convencionou ser um tipo cheio de piada) deu o peito às balas, defecando retórica pestilenta que denunciava o atrevimento da actriz. O pateta do regime elevou o nível: insinuou despeito da actriz, pois consta que sofreu um desgosto de amor provocado por um antigo namorado lusitano. À cavalgadura, esta interrogação: e o que é que isso interessa?

Duas observações sobre o lamentável episódio. (Bem entendido, lamentável não é o filme amador protagonizado pela actriz; foi a enxurrada de reacções histéricas ao filme.) Primeiro, houve tanta gente a cair na esparrela do povo macambúzio. Às tantas, os que nos olham de fora para dentro, estranhando que também sejamos latinos, é que a sabem toda. É quando sublinham a propensão para a melancolia, a incapacidade para nos rirmos (a não ser que se trate de humor de segunda categoria, inane de inteligência, boçal), a interiorização de que há coisas tão sagradas que ninguém as pode maldizer. O que nos falta para sermos crescidos e despojados de preconceitos que nasceram em nós, imagem da portugalidade que outrora se abraçou ao mundo e que agora está confinada a um esconso canto da Europa? Falta a capacidade para fazermos humor com as fraquezas que alindam a idiossincrasia. Somos tristonhos, enfadonhos. Somos do melhor que há no mundo no trejeito de franzir o sobrolho. E ai de quem zombe das nossas fraquezas e vergonhas, que logo apanha com o opróbrio da maralha.

Segunda observação: revejo o filme amador, anoto a sátira e chego ao final com a leve impressão de que tudo ali bate certo. Talvez isto explique que muitos patrícios se doeram. Há verdades que magoam de mais – as verdades inconvenientes, aquelas que são varridas para debaixo do tapete. Somos gente estranha: quando treinamos o ensimesmamento, estamos na linha da frente no diagnóstico das vergonhas que nos consomem. É um interminável inventário de frouxidões. Como se a portugalidade fosse a pior coisa que o mundo conheceu. No dia seguinte, uma estrangeira sumaria alguns destes desconchavos pátrios e não somos capazes de os admitir. Só porque não foi um de nós a enumerá-los; só porque quem cometeu a ousadia chegou de fora e satirizou algumas das coisas que por aqui viu. Nos estrangeiros, isso é aleivosia; na gente indígena, é força de carácter.

Estamos carentes de alguma maturidade. Enquanto formos gente coberta por uma espessa camada de poeira, de cada vez que pousar uma mosca é todo o verniz que se estala e nem assim nos conseguimos desempoeirar. Ao ler algumas das reacções despropositadas dos patriotas de serviço, percebi como esta gente só consegue viver se carregar a poeira do passado. Do grandioso passado da pátria que cultivam, como se essa pátria não fosse hoje uma insignificância (pode-se dizê-lo sem cometer uma heresia?). É enternecedor ver como tantos coveiros da pátria açambarcam a portugalidade como relíquia.

E assim andamos todos entretidos com assuntos tão relevantes. A perder um pedaço do precioso tempo ensaiando argumentos que despejem a actriz na praça da ridicularia. Como se sentiu esta gente ao ver o perdão público que a actriz colocou em rede? Adivinho-os exultantes, garbosamente saboreando o travo da vitória, puxando o lustro ao orgulho pátrio que trazem à lapela. E, ao mesmo tempo, ainda mais empoeirados.

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