5.10.09

República ou animais?



Não chegou a ser um dilema. Hoje a república faz noventa e nove anos – para o ano já está ajuramentada festa de arromba. Ontem foi o dia mundial do animal – e leio nas notícias que há cada vez mais animais domésticos abandonados.

Ora, ouvi dizer que o republicanismo tem, entre muitas putativas virtudes, a sensibilidade de olhar pelos desvalidos. Por isso hoje escrevo sobre a efeméride de ontem, decerto com a anuência da dona república. A minha excitação pelo republicanismo é parecida com o ponto de congelação, o que contribui para a exclusão de partes. Não se depreenda que seja monárquico. As coisas anacrónicas do mundo não me atraem nada: nem me babo pela república, nem teço loas à monarquia. E quando vejo os senhores que se exaltam com as qualidades da república, não consigo dissociar a coisa da gente que a endeusa.

Ao que interessa – os animais e os direitos que milímetro a milímetro lhes são reconhecidos. A notícia ecoa as estatísticas: tem aumentado o número de animais domésticos abandonados. Suspeita-se que é por causa da crise – e outra vez a crise, a crise das costas largas, a arcar com (outro) odioso. Os padecimentos da crise encurtam os dinheiros de toda a gente. Com as finanças à míngua, as pessoas descartam-se dos animais de estimação. Eles dão despesa: o veterinário onde apanham as vacinas e são desparasitados uma vez por ano; as doenças que aparecem, aleatórias como em nós, e que aumentam a rubrica das despesas no orçamento familiar; e a alimentação, que os animais não vivem do ar e do vento e, aconselham os veterinários, não devem comer da nossa comida que lhes faz mal.

A crise é pretexto em vez de explicação. A ideia do abandono dos animais acentuada pela profunda crise só é válida para os que estão no desemprego. Recordo-me de ter escutado palavras soporíferas do ministro das finanças e do governador do Banco de Portugal a convidarem a turba (só a que estivesse empregada) a aumentar o consumo, pois as taxas de juro estavam a descer vertiginosamente, os preços também e, portanto, as gentes teriam (jargão técnico agora) um "aumento do rendimento disponível". Com mais dinheiro nos bolsos e nas contas bancárias (quem somos nós para contrariar aquelas sumidades?), esfuma-se a ideia de que as pessoas abandonam os animais por causa da crise. Lá está: a crise tem as costas muito largas.

Onde tudo se entorna é na maneira de sermos. Humanos. Mas estupidamente animalescos, com uma insensibilidade tão brutal que supera, e de longe, os índices de irracionalidade que dizem fazer a distinção entre o homem-animal-racional e as demais espécies, todas irracionais (como ensinam os manuais de estilo). Há dias contaram-me como se abandona um animal: uma senhora bem-posta na vida pára o seu vistoso automóvel na rua, aproveita-se da alvorada pois anda pouca gente na rua, abre o porta-bagagens e dá ordem de soltura ao cão que a partir daquele momento deixou de ser seu. Com esta frieza, como se o animal fosse uma "coisa" descartável que se rejeita para o lixo, uma "coisa" indiferenciada. Já ouvi dizer que as famílias (sobretudo da burguesia supostamente esclarecida) gostam de fazer todas as vontades à prole que lá têm em casa. E se o petiz quer um cão ou um gato pelo natal ou pelo aniversário, seja feita a vontade do menino. Quando, uns tempos mais tarde, a criancinha já não está encantada com o "brinquedo", os progenitores interrogam-se sobre a sua serventia. Não faz mal: abre-se a porta da rua, a nova morada do cão ou do gato. Ou, muitas vezes, a certidão de óbito antecipada que lhe passam.

Na notícia, uma dirigente da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal sugere que este triste estado de coisas é o espelho da falta de educação. Assino por baixo. Se houvesse mais civismo, sobretudo dos que deviam dar o exemplo (os senhores deputados que fazem leis), os donos de animais domésticos deviam ser cadastrados. Os que tivessem o cadastro manchado por um vergonhoso abandono de animal de estimação, um único que fosse, seriam proibidos de voltar a ter animais em casa. Já que não se pode fazer a gratificante experiência desta gente passar pelo sofrimento sentido pelos animais que abandonam, ao menos que fossem cadastrados para nunca mais abandonarem um animal.

O mal maior é este: viver numa república com leis tão anacrónicas como a república. Por exemplo, o código civil ensinar que os animais são "coisas".

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