26.10.09

Os sonhos nunca acabam

De uma folha em branco começam. São os seus próprios arquitectos, só com umas pinceladas de realidade a servir de mote. Tecem-se em sua total autonomia. Tomam de assalto o sono. Somos conduzidos pela sua mão, como passageiros de um avião na impotência de alterar o rumo que o voo leva. Sonos que se deitam no proveito de sonhos bons. E sonos tumultuosos, absorvidos por pesadelos que sobressaltam. Talvez os especialistas que estudam os labirintos em que se tece a mente hajam encontrado explicações para os sonhos. Como desconfio da proficiência de quem decifra os sinais enviados pela complexa mente dos outros, o onírico faz rima com insondável.

Os peritos que dissecam a mente terão forma de explicar por que sonhamos com isto ou aquilo. Há sonhos óbvios: pessoas que fazem parte do passado, pessoas que coabitam com o presente, acontecimentos marcantes, outros sem significado mas que povoam o subconsciente, temores que caldeiam acontecimentos que terão impressão digital em dias vindouros. Mas há sonhos impensáveis. Improváveis conjugações de pessoas e de cenários, palavras que jamais se julgara poderem ser proferidas. É nos sonhos que a dimensão surreal ganha espessura. Até que os olhos se abrem e o sonho insólito se evapora diante da forquilha do que tem autenticidade. Aos sonhos que têm contacto com a existência, os peritos asseguram tratar-se da mente em fervilhante actividade, mesmo quando o corpo repousa no sono. Mas o que dirão dos sonhos improváveis, esquadrinhados pelo seu paroxismo?

Pouco me importam as deambulações dos que curam da intensa, vulcânica actividade cerebral. Prefiro consagrar a fonte inesgotável que os sonhos são. Não dos que retomam pessoas conhecidas ou páginas da existência onde a poeira do passado já assentou. É nos sonhos inverosímeis que reside a copiosa fonte criativa. Mesmo quando dormimos, a mente continua acordada. Febril na sua actividade imaginativa. Conseguimos ser dois hemisférios separados: cabeça e corpo. O corpo dominado pela mente.

Os sonhos incandescentes, os sonhos paradoxais, são de uma incerteza atroz. Tanto podemos tê-los agradáveis, como acordar embebidos em suor pelo desassossego de um pesadelo pavoroso. Não digo que os sonhos, bons ou maus, tenham que comandar o dia que se segue. Mas quem nunca teve um dia adulterado depois de uma noite assaltada por um pesadelo que merecia entrar para o manual de estilo do surrealismo? Porém, na noite que se segue, quando a cabeça repousa na almofada à espera da caução do sono, a letargia confunde-se ainda com uma interrogação que aterra com o sono que chega: como serão os sonhos da noite que vem?

Os sonhos são a impressão digital da nossa esquizofrenia. Quando semeiam a improbabilidade dos cenários, das pessoas, das palavras que se montam como se tratasse de uma ficção do autêntico. Há neles um desdobramento de nós e das nossas circunstâncias. Ora somos actores em réplica do que já se passou, revisitando os acontecimentos de outrora registados na sua intensidade; ora nos trazem à condição de actores em interpretação de um papel numa existência desconhecida, com pessoas estranhas, na improbabilidade de actos e palavras. Nesses insólitos sonhos, assistimos de fora ao desempenho enquanto actores do sonho. Num jogo de espelhos que se amplia pela lente desfocada do sonho que vai consumindo a noite.

Regresso aos peritos, aos que souberam descobrir que nem sempre resguardamos a memória dos sonhos. Se estiverem certos na sua ciência, há sonhos incógnitos. Aqueles que não derrotaram uma qualquer barreira mental. Como se não tivessem conseguido emergir à superfície, sempre imersos nas águas profundas onde a escuridão impede de os resgatar. Não dizem os peritos qual a frequência dos sonhos imperceptíveis. Esclarecem que é impossível fixar uma regra, pois somos muito diferentes na auscultação onírica.

Do que é possível lembrar dos sonhos que romperam a barreira mental que arremete em sua asfixia, deles sobra uma matéria inesgotável. São a grande musa inspiradora, ou um fantasma aterrador que amedronta o sono. Agridoces, na sua matéria contemplativa que ora impõe um desanuviado dia por diante, ora instala um aspecto carrancudo quando um pesadelo se queria evitável.

1 comentário:

Milu disse...

Também penso que os sonhos são desdobramentos de nós e das circunstâncias da nossa vida. Sempre que estou perante um problema que, mau grado meu, me sinto incapaz de resolver, como é o caso actualmente, dou em sonhar com sítios que desconheço, mas que me parecem lugares em pequenas localidades, com ruas estreitas, algumas delas com ladeiras e curvas. A configuração habitual de uma qualquer localidade. No sonho, uma aflição me assiste, quero dali sair, para onde penso que é a minha terra, mas não sei qual o caminho a tomar. Existem várias ruas, mas todas sem placas de indicação, por vezes estou à espera de um transporte que nunca chega. O curioso é que quando tento perguntar a alguém qual o caminho a tomar de acordo com o destino que pretendo, tudo se confunde. Ou não sabem, ou não encontro ninguém a quem perguntar, ou o sonho fica ali num limbo! E é aqui que reside a chave do meu problema, penso! Porque não consigo eu ter uma resposta, que me faria sair dali, daquele lugar que não conheço, se na vida real, tudo se pode perguntar e tudo pode ser respondido? O que é que este sonho me está a querer transmitir?

Uma vez, há uns bons anos, sonhei que estava na parte mais acima de uma qualquer estrutura metálica, como se fossem umas vigas metálicas montadas de forma a desenhar figuras geométricas. O meu irmão mais novo, com o qual sempre tive uma relação próxima estava um pouco mais abaixo, com um semblante de calma estampado no rosto. Aliás, ele é sempre assim. Poderia estoirar uma bomba, logo ali ao seu lado, que a postura dele seria a mesma, olharia a tentar descodificar o que acabava de acontecer, mas com uma calma dos diabos. Porém, eu que me encontrava num plano superior ao dele,pretendia descer, mas não encontrava maneira de saber como. Nalgum lado teria de apoiar os pés para descer, mas esse ponto não existia. Então, assim sendo, como foi possível que me encontrasse ali? Como teria, então, subido? E o meu irmão continuava de cabeça erguida, olhando-me com aquela sua estranha calma! Estes sonhos sempre me perturbaram, porque sinto que eles têm uma raiz profunda, algo que traduz, provavelmente, muito de mim e das minhas incertezas.
Por vezes também consigo modificar o fim dos sonhos, procuro adormecer novamente, vou sonhar a mesma coisa e dou-lhe um desfecho mais soft, contudo, sinto que estou a fazer batota, o que me deixa algo insatisfeita, ainda assim, lá consigo desfazer um pouco a má impressão que o sonho me havia causado.