Há quem viva para isto: ser tutor de uma longa fila de gente que se diz sua admiradora. São os que escutam elogios como se fossem música entoada por celestiais violinos. Como se andassem demoradamente com um olho em cada vidraça onde a sua imagem se espelha, só para se enlevarem com a silhueta, a silhueta que seja, reproduzida pela vidraça. Aduzem a sua fúlgida existência para se convencerem que são arquétipos para um numeroso exército de admiradores. Assim como assim, até foram os outros que construíram toda a aura que a agora narcísica personagem ostenta.
Alardeiam superioridade moral (e nem aceitam que a expressão venha antecedida por um prudente vocábulo: "suposta"). Exalam moral por todos os poros. Ensinam-na aos tresmalhados e aos hesitantes que reparam no seu maravilhoso exemplo. Desdenham dos que não aceitam a objectividade da moral; atiram-se furiosamente aos que recusam qualquer ensaio de moralidade que se imponha do exterior ao interior de cada indivíduo; acusam de insanidade os que desmentem a existência de moralidade. Como exemplos a seguir, sentam-se num trono inacessível ao comum dos mortais, o trono de onde julgam os outros. O seu insaciável trono. Fazem-se soberanos mercê da contemplação que um séquito lhes dedica.
Que inveja desta gente tão certinha, tão cheia de virtudes. E tão carente de lhaneza da humanidade que se inquieta com as incapacidades em que tropeça vezes e vezes. Invejo-os, pois cultivam a vidinha com uma impressionante perfeição e ainda sobra tempo para terem a generosidade de dar palpites sobre os desgraçados que andam tão arredios da imaculada têmpera com que adejam sobre os demais. É por mim que falo ao destapar esta inveja dos profícuos fazedores de almas perfeitas: do tempo que há, não sobeja fracção visível para descobrir os elixires ambicionados, quanto mais para abraçar o fútil sentenciar dos passos que os outros deram.
Às vezes, de maneira tímida, este estigma pousa à minha porta. Detesto que o façam. Incomoda-me, profundamente. Não se trata de falsas modéstias. Do que se trata é de repugnar a ideia de que alguém possa ser um exemplo na vida de outros. Era como se fosse possível, por artes de magia, replicar os predicados pessoais de um suposto herói nos seus seguidores. Da parte destes, uma tremenda indignidade que em si impõem. A confissão das pessoais fragilidades – o que não causa objecção a quem se lembre do que é ser-se humano – é o pretexto para soltar o doloroso anzol na íris da auto-estima: só há terapêutica se os olhos filtrarem um exemplo, um exemplo qualquer que ao som da ventania que sopra o destino pousou, aleatório, no regaço de um desgraçado qualquer.
Os supostos arquétipos têm os seus fantasmas escondidos em armários que, por sua vez, estão diligentemente escondidos da curiosidade pública. Não vá dar-se o caso de segredos inconfessáveis treparem à superfície, manchando o que outrora fora o imaculado paramento a cobrir o indivíduo dantes endeusado. Com outra agravante: a depressão colectiva a que seriam levados os outrora admiradores, por extinção da referência que marcava o compasso da sua própria existência.
Quem não tem um lado escuro, um recanto de que se envergonharia caso deixasse de estar resguardado no baú dos segredos íntimos? Os arquétipos que se colocam no pedestal decerto soltam como resposta contundente "não, não no meu caso". Já vi deuses com pés de barro a esbotenar, o passo inicial para a decadência que só terminava com os pés de barro feitos em cacos, deixando uma legião inteira de seguidores na orfandade. Oxalá aprendêssemos a conviver com as fragilidades. Oxalá recusássemos olhar para outros como o mirante de onde se alcança um nirvana qualquer. Os heróis têm a espessura de uma fantasia. São ingredientes de um conto de fadas que, sabemo-lo tão bem, é do domínio do onírico.
Das poucas vezes que soou aos ouvidos que seria "exemplo" do que quer que fosse (e aqui grafar "exemplo" é um imperativo, dos poucos imperativos categóricos a que franqueio entrada), só me apetecia descarrilar e retirar a razão que os elogiadores julgavam estar consigo. E não seria apenas o teimoso espírito de contradição a gritar ainda mais alto do que o sussurro que, em mim, transformava um elogio em matéria repulsiva.
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