13.10.09

O momento psicológico do voto



Isto não é bem uma confissão (pois já por aqui discorri abundante argumentação a favor da abstenção): este ano tirei a barriga de misérias. Foi um fartote de eleições – para o povo e para a classe política que pôde, três vezes num ano, colocar-se em bicos dos pés. E para mim, que andava militantemente arredado das mesas de voto. Fui votar nas três vezes. Para desafiar a pessoal relutância ao voto. Apetece-me chamar a isto a vertigem pela bebedeira dos contrastes.

As minhas escolhas não traduziram uma identificação completa com os escolhidos. Na renovação da experiência do voto, vi-me enclausurado na categoria de eleitores que acabam por aderir ao candidato que mais se aproxima das suas posições. Uma espécie de "mal menor". Até isto seria um desafio às sensações que me iriam percorrer. Antes e, sobretudo, depois de ter deixado o voto na caixa negra.

Isto de votar é um acto curioso. Dizem-nos, com a gravidade dos momentos muito sérios – registo presidente da república – que votar é uma imposição de cidadania. Supõe-se, portanto, que o devemos fazer com responsabilidade. Devemos saber várias coisas antes de depositar o voto na urna (é interessante que não mo deixaram fazer: tive que entregar o voto na mão do presidente da mesa que, ele sim, foi o penhor das minhas escolhas; e, todavia, via imagens dos líderes políticos a quem era permitido a deposição do voto pela sua mão, sem intermediação dos membros da mesa de voto). Devemos saber ao que vamos: o que significa a eleição, por que vamos escolher quem escolhemos, o que podemos esperar se os que escolhemos forem eleitos, ou se nos importamos se à partida sabemos que os que escolhemos vão ficar de fora. Já sei: os zelosos vigilantes da igualdade apressam-se a desmentir o que estou a insinuar – que o voto, contrariando o que está convencionado, não é universal. Esta é uma das maiores ilusões do voto paritário: um voto leviano vale tanto como um voto – como dizê-lo sem ofender sensibilidades? – "informado" (ia a escrever "esclarecido"; recuei a tempo).

Nas vésperas das eleições, andei à procura de azimutes. Primeira decisão: ia manter-me fiel à abstenção militante? Como a resposta foi negativa, surgia por diante a pergunta como resposta mais difícil: em quem votar? Para mim era mais fácil identificar em quem não estaria, em condição alguma, disposto a votar. Feita a exclusão de partes, não sobrava nada. Para não trair a teimosa coerência que me fustiga, convenci-me que não podia voltar atrás na interrupção do abstencionismo metódico. Era um terrível dilema: a votar, que não fosse em branco ou nulo (porque os votos em branco não têm o valor que deviam ter: ocupar lugares no parlamento). Impunha-se uma escolha. E como nenhum dos prometidos partidos alternativos concorreu às eleições (partido dos animais e partido pirata), a certa altura dei comigo órfão de escolhas: queria escolher um, mas não sabia qual. Avivou-se a metáfora que povoara o pensamento: votar é como escolher uma mulher para a vida. Não é a primeira que vem à rede.

Mentalizei-me que tinha que decidir antes de meter os pés ao caminho. Para não ficar na reclusão da mesa de voto, hesitante, a demorar-me para além da conta. As hesitações, sentia-as depois do acto. Revivi a caneta BIC de tinta azul presa por um cordel (será que também ali há furtos?), o espaço propositadamente claustrofóbico para forçar uma decisão célere, e os papelinhos coloridos (na votação de domingo) ou os boletins de voto que não sabia serem tão grandes (nas eleições europeias e nas eleições legislativas) – é o que dá a desabituação do voto. E aquele momento em que a mão tomava conta da caneta e, num ápice, desenhava a cruz na quadrícula identificada com a escolha tomada antes de sair de casa.

Passei em revista cada instante, como se o revivesse em câmara lenta e a imagem passasse vezes sem conta. Não parava de me interrogar se aquilo tinha sido boa escolha. Rebobinava as imagens, via a tinta azul a desenhar a cruz, como se fosse possível discernir cada minúsculo ponto unindo-se ao ponto anterior até todos os pontos se transformarem numa cruz. Na minha escolha.

A democracia é isto: uma somatório de escolhas propensas a tantos dilemas, logo, a uma elevada probabilidade de equívocos? Quantos já não terão governado por causa de uma interminável sucessão de erros fermentados por hesitações? E não sei: se não se devia reinventar a democracia. Ou as eleições.

1 comentário:

Milu disse...

Quando fui votar para as autárquicas fiquei admirada: Três boletins? Para quê tanta papelada e trabalheira, já que em vez de olhar bem para um só boletim e numa das quadrículas traçar uma cruz, tive de repetir o acto por mais duas vezes?

A verdade é que das outras eleições autárquicas em que votei não me recordo de ter sido assim, ou então, sou eu que estou a perder qualidades e não me recordo.

Confesso sem qualquer pejo que votei sem mesmo saber quem eram os candidatos. Para que me interessa saber se é este ou aquele, se de certa forma, tudo vai dar no mesmo? Optei antes por votar no partido da minha preferência, quanto mais não fosse, para lhe dar mais apoio.

Bem que encontrei na minha caixa do correio um prospecto e nele impressa uma cara conhecida ao lado do símbolo do partido com que simpatizo, mas logo atirei com ele para o lixo, sem mesmo o ter lido. Contudo, se aquele indivíduo foi o candidato para presidente da Câmara, então, posso dizer que votei bem, já que penso ser uma boa pessoa, penso... Acerteza disso, nunca a poderei ter...