16.10.09

Medo do escuro/um céu nocturno a cintilar, repleto de estrelas



Não é escuro o céu nocturno de onde se alijou a nebulosidade que o podia tingir. A escuridão povoada por minúsculas estrelas é o seu contrário: não, não um pano de fundo onde se compõe a espessa, negra tonalidade que encerra mistérios encavalitados. A constelação de estrelas, anarquicamente ordenadas, empresta a luminosidade que depõe contra o espesso manto pardacento de onde elas sobressaem. Dir-se-ia: de tão escuro o céu nocturno, as estrelas irradiam uma refulgência feérica.

O imaginário é fértil em metáforas que apoucam a escuridão. Porventura são o sinal de uma infância atravancada, com mal resolvidos assuntos a pender em todas as esquinas do pensamento. A pessoa comum sofre de apoplexia quando lhe retiram a visão, quando uma entidade poderosa as condena a temporária escuridão. É como os infantes, cheios de medo do quarto escuro para onde são atirados de castigo. Podem ser traumas de outrora a pesar no imaginário popular. A noite é uma reclusão, o desengonçado restolho do dia que impede a luz natural de vingar.

Veja-se as cidades: alumiadas exaustivamente (e ainda não se lembraram os apóstolos do ambiente de tornar causa sua a extinção dos lampiões citadinos a partir de certa hora adiantada, ou pelo menos de se congeminar medida que ordena apagar um lampião por cada outro que permaneça aceso). Se os automóveis têm luzes de presença que são os olhos que desvendam as ruas por onde andam, por que precisam as cidades de jorrar o intenso feixe de luz que brota da iluminação pública? Por medo do escuro. A parafernália de luzes públicas é a interminável teia de estrelas que se espalha pelas ruas e avenidas e praças da cidade.

As coisas sobem nos seus contrastes. Eis o paradoxo da luz: é onde ela existe em abundância que menos se nota o fulgurante mapa tracejado pelas estrelas. É onde a artificialidade consome a exuberância das estrelas em natural refulgência. É preciso exílio no campo, e a generosa distância de qualquer propagação luminosa de meios urbanos, para admirar as trevas naturais que são a candeia para o mapa estrelar. Mas as pessoas fogem do campo com medo que o negrume retire conhecimento. Não sabem: refugiam-se nas pradarias apetecíveis onde a irradiação de luz é nutriente das trevas em que os sentidos em agnosia mergulham, derramados em perfeita ilusão. Como se as coisas fossem o que não são.

Protestam contra as trevas do conhecimento. Prolongam os temores infantis da escuridão até à idade adulta, alguns até entrarem na senescência. É nos covis das cidades, onde julgam residir o manancial da luz inspiradora, que encontram refúgio. Para alcançarem o conhecimento e mantê-lo cevado pelo intenso feixe que serve de candeia ao conhecimento que chegará algures do porvir. Mas tudo que se atinge é uma erudição balofa, auto-panegírica. Uma erudição alimentada em círculos por uma casta de vultos que é, ao mesmo tempo, quem conceptualiza e quem interpreta essa cultura. Os coiotes da artificialidade.

Este é o desafio maior: encontrar a chave para a simplicidade dos saberes, a despretensiosa singularidade das palavras que descodificam esses saberes. Não julgo que a encontro (à simplicidade) na coreografia intensa e inebriante que os fogachos perenes dos lampiões tributam à cidade. Julgo que daí sobra uma obscuridade latejante, o breu que se insinua entre o resplendor das luzes artificiais. Por vezes, impõe-se o degredo longínquo, onde anoitece a luz clara, tão alva, de um mapa tacteado pelas estrelas. Onde as sombras, que tomam conta do horizonte quando os olhos deitados se espraiam na infinitude do céu, as sombras não passam de falsas sombras. Pois elas desvelam-se num novelo claro, a saliva que as estrelas deixam para trás ao tactearem o céu nocturno.

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