8.10.09

A esquerda lírica



Será defeito incorrigível e imperdoável se um politólogo for ao mesmo tempo observador do seu objecto de estudo e parte interessada num resultado? Já não é a primeira vez que fico às voltas com a "ciência engajada". Desta vez tiro o chapéu ao politólogo que ao menos não tem pejo em acusar as suas preferências na cartografia política e partidária local. Sem escorregar para a "ciência engajada" acarinhada por certos sociólogos coimbrãos, André Freire é o mentor mor da unificação das esquerdas indígenas.

Há dias, voltou à carga em artigo de opinião no Público (também acessível aqui e aqui). De se lhe tirar o chapéu a apreciação das consequências das eleições legislativas. Sobretudo quando mostra o emagrecimento do bloco central, que ficou mesmo no limiar dos dois terços de deputados que dispensam a colaboração de outros partidos na revisão constitucional que se avizinha. Também corroboro o contentamento de André Freire pela diluição dos partidos do bloco central, pois mantenho a ideia de que o estado em que nos encontramos se deve ao oligopólio de poder destes partidos. Afastar o estigma do bipartidarismo enriquece a muito pouco madura democracia.

Já não alinho no entusiasmo de Freire quando faz cálculos que suportam a sua opção de governação. Primeiro, o PS e o PSD continuam a ter dois terços de deputados. Podem chamar a si a revisão da Constituição, mantendo-a como um feudo. A Constituição continuará a ser um mostruário do pior que o bloco central contém, naquele seu maneirismo muito Dupont e Dupont que torna os dois partidos quase indistinguíveis.

Segundo, André Freire deixa-se levar pelo entusiasmo dos resultados das eleições e faz uma leitura que revela alguma miopia. À partida, acerta no diagnóstico: os partidos das esquerdas contaram mais votos (com cerca de 15% de diferença) e reuniram mais deputados (trinta, antes da contagem dos quatro que faltam, os dos círculos eleitorais da emigração) do que o somatório dos partidos de "direita" (é escusado explicar as aspas: se o PSD é de "direita", eu vou ali e venho já…). Extrai a seguinte conclusão: a maioria dos eleitores não quer que a "direita" meta o bedelho no próximo governo. Só que a magra vitória dos socialistas exige negociações que (espera Freire) desagúem em entendimentos.

É aqui que a "porca torce o rabo". Por isso é que Freire deu a cara, com outros sonhadores da unidade das esquerdas, por uma plataforma (Compromisso à Esquerda) que ponha o PS, o BE e a CDU sentados à mesa das negociações. O resultado desejável? Que se entendam e partilhem as responsabilidades do governo que está para vir. Todos teriam que identificar as cedências que possibilitassem o resultado desejável. Para reforçar a sua proposta, polvilha-a com "vários países da Europa ocidental" onde esse entendimento foi possível (sem identificar esse numeroso grupo de países, que – ao que sei - não é nada numeroso). É quando o politólogo confunde "wishful thinking" com a realidade. Entendo que queira ver uma grande aliança popular ao leme da pátria. Todos temos direito a ver a ideologia que defendemos prosperar; é uma oportunidade para confirmar que essa ideologia é a melhor para a maioria dos cidadãos (na suposição de que governação corre bem…).

Quando a febre dos interesses pessoais intersecta com a análise em forma de ciência, esta perde lucidez. É inútil jogar os exemplos dos "vários países da Europa ocidental" governados por esquerdas policromáticas, pois as idiossincrasias nacionais impedem as comparações com outros países. As esquerdas caseiras odeiam-se. Isto é histórico e factual. Não se antecipa como, com as actuais lideranças e os programas com que se apresentaram às eleições, possam limar as muitas diferenças que os separam. Seria o PS a ceder às exigências radicais dos partidos de extrema-esquerda? Onde metia o PS o programa com que se candidatou às eleições? Na gaveta (outra vez)? Ou seriam os comunistas e os da esquerda caviar a fazer concessões, cravando uma faca na sua genética anti-sistema só para amesendarem o apetecível poder que se serve no governo?

Até posso estar enganado. E sermos governados por uma grandiosa aliança popular. André Freire seria o ministro dos assuntos parlamentares. Não vejo ninguém com melhor perfil para amparar as pontas frágeis do entendimento entre as esquerdas. Seria uma espécie de Madre Teresa das esquerdas tão teimosas em serem desavindas.

1 comentário:

Milu disse...

Na minha opinião que pouco ou nada percebo de política, o PS, ou seja, o Sócrates, de quem você não gosta, deve governar sozinho, porque há determinados princípios que não devem ser flexíveis. Se eu não acredito, nem um pouco sequer, nos líderes de outros partidos, tais como: O Paulo Portas, o Louçã e outros, como engoliria eu tamanho sapo, ao vê-los fazendo parte de um governo, às cavalitas de uma maioria necessária?
Pela minha vontade, que sou uma cidadã consciente dos meus deveres e direitos, esses senhores que referi, nunca me representarão, porque neles não encontro eco daquilo que penso ser uma sociedade mais justa. Não referi a Manuela F. Leite, porque julgo que daí nada tenho a temer. Se a ideia que me foi possível fazer de Sócrates, ao longo do tempo e dos acontecimentos, estiver certa, então, jamais fará parte de um governo de coligação com o Sócrates, nem pintada a ouro! Porque há coisas muito difíceis de engolir...