Para que não sobrem dúvidas: que as palavras que se seguem não sejam entendidas como uma indirecta apologia da alternativa à república. Se a alternativa é a vetusta monarquia, quase me faço republicano à força. Por ausência de alternativa. A adesão não seria espontânea. Talvez por isso, não sou daqueles que decretaram o estatuto sacralizado dos "ideais republicanos".
Sarkozy Júnior, estudante do segundo ano de direito, vai dirigir um importante bairro de Paris. O líder dos socialistas franceses berra: traição aos ideais da república – que, como se sabe, impedem sucessões dinásticas ou privilégios familiares. Não sei como é em França, mas pela república indígena os nomes, certos nomes de famílias que se brasonaram na república, fazem muita diferença na hora de abocanhar sinecuras apetecíveis no sector público e (oh surpresa!) até no sector privado.
Não estou por dentro da realidade francesa, mas aposto que aquele senhor socialista, se algum dia arribasse ao cadeirão do poder, desatava o nó do favorecimento pessoal que lhe fosse conveniente, com algumas prebendas reservadas a membros da família. Talvez lhe fizesse bem se alguém avivasse a memória: foi por excessos destes que, há uns anos, uma camarada sua provocou a auto-demissão da Comissão Europeia. Consta que a patologia é transversal aos lugares onde existam socialistas: chamam-lhe fraternidade. Eu digo, fraternidade na mais pura das acepções.
Por cá, a república que entrou em centenárias celebrações repudia os símbolos, os princípios, a ideologia da monarquia (se a monarquia possuir uma). A república tomou conta do espaço que durante séculos foi detido pelos reis. Não estranha que os "ideais da república" tenham sido erguidos nos contrafortes da monarquia. Não acho que os mentores da república tenham descoberto nada que mereça encómios. A sua ideologia não é intelectualmente reformadora. Os alicerces que fundearam já estavam ancorados. Podres, mas ancorados: eram os esteios de sinal contrário que, de tão apodrecidos, eram já incapazes de suportar a desamparada monarquia. A república foi inventada por antinomia da monarquia. É neste sentido que a acho despida de originalidade. Quando temos algo em que nos não revemos, procuramos afinar a bússola por outro modelo que seja a sua antítese. Quem o faz não pode reivindicar um estatuto de singularidade.
Os fiéis sacerdotes do republicanismo indígena terão acenado a cabeça em tom de reprovação quando leram a notícia sobre as novas funções do filho de Sarkozy. Aliás, esta é uma daquelas notícias repleta de oportunidade. Pois os fiéis sacerdotes do republicanismo casto são, como devem ser os republicanos de gema, de "esquerda" (ou de uma das esquerdas). Eis uma oportunidade para repreender um governante "de direita" – e, de caminho, pespegar os rótulos do costume na malta de "direita", numa efervescência da honestidade intelectual típica de quem pretende arrumar o adversário a um canto. Por acaso, nem interessa que a imensa maioria dos tresloucados de "direita" seja republicana. Como Sarkozy terá movido as suas influências para o rebento abocanhar uma apetecível prebenda, toma-se a árvore pela floresta e corta-se a eito, em mais uma oportunidade para diminuir a "direita" – essa coisa nefanda.
Ora mandam os sinuosos caminhos do destino que às vezes o que se cospe caia em cima de quem soltou a excreção salivar. Já foram tantas as ocasiões em que damos de caras com um chefe disto ou daquilo, ou com um funcionário do topo da administração pública, ou até com gente que ocupa destacados lugares em empresas privadas, e os nomes de família destas pessoas não soam a estranho. São os nomes da nova oligarquia. Da que vingou à sombra da república. Podem não chegar lá por nomeação directa do familiar mor. Mas há certos nomes com o pedigree certo, nomes que têm o condão mágico de abrir portas com uma facilidade invulgar.
São os nomes com pedigree republicano. A sucessão não é dinástica, que as eleições curam de a impedir. Mas no dia-a-dia, os republicanamente brasonados nomes são uma forma de fazer desta república uma monarquia com outro nome. À falta de alternativa, a resignação de olhar para as faces da mesma moeda.
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