O dia sonha-se. Um de cada vez. A espreitar detrás do véu brumoso da aurora. Não, o que interessam não são os dias ausentes. Ou as ausências que parecem tornar os dias um terrível deserto. Se arremetermos contra a cortina de nevoeiro que transborda a sua espessura e escurece o dia que se retarda, há nas gotículas frescas que pousam no rosto a purificação dos sentidos.
E não, de igual modo não interessa prolongar a escuridão do dia nascente, como se uma teimosia nocturna se estendesse para fora dos seus domínios. A intrusão só acontece pela ilusão de quem teima nas trevas que sobram da noite acomodada pela insónia. Oxalá soubéssemos, a cada dia que irrompe, recebê-lo na luz resplandecente que irradia. E que a cada alvorada fôssemos capazes de sorver no orvalho que se deitou nas flores o néctar que alimenta outro dia majestoso. Todos os dias deviam ser imperiais, um pórtico onde apenas fosse acreditada a visão colorida das coisas. Em cada manhã onde os despojos inúteis fossem vertidos, haveria uma página arpejada, a frondosa lição a ungir uma bênção terrena sobre a existência então sagrada. E os dias deixariam de fluir na sua inércia a preto e branco.
Tem algum proveito, a noite? Ou é apenas um altar onde a luminosidade fica cerce, a visão decaída pelo ofuscamento dos lampiões que emprestam alguma luz à cidade? A noite – é o que ela é –, a preparação da alvorada onde tudo se renova. Tem esta serventia, a noite: é nela que se confeccionam os sonhos que apascentam os dias. É por isso que digo que os dias se sonham. Pela noite fora, no acolhimento do sono. É nela que se escolhem as pétalas perfumadas do bouquet em que se há-de compor o dia remansoso. A matinal frescura soprada por ventos boreais, a que dá alento ao dia em parto provocado pelo sol em timidez perdida, é o compasso. A cada dia que esvoaça pelas folhas do calendário, o compasso indeclinável.
Temos um dever a honrar: a dignidade dos dias que sonhamos, de cada vez. Para depois os tragarmos como quisermos – ora com avidez, como se aquele fosse o derradeiro dos dias, ora com a volúpia que parece demorar os dias além da bainha dos relógios. Há, por uma vez que seja, um imperativo categórico a estender-se, tomando conta de todos os milímetros do horizonte. Se cada um de nós não contemplar a alvorada que desponta numa caridosa rotina, em nós se esmaga a impiedosa incapacidade de prestar homenagem à existência que lobriga. Nessa altura, é como se estivéssemos a convidar a perene escuridão a tomar conta de tudo, como se os dias ganhassem a espessura dos dias de árctica invernia.
As vidas não se transfugem. Se fosse o caso, estas palavras seriam apenas o mote para uma ode ao individualismo. E não, não atraiçoamos memórias se quisermos aproveitar a beleza do ar límpido de um dia matinal, de todos os matinais que vierem pintar-se à nossa porta. Os lamentos, esses pertencem ao património imaterial, fermentando a exaustão do que somos. Tão imaterial como o vento que tentamos, mas não conseguimos, agarrar entre as mãos. Não se gastem as mãos em gestos tão áridos. As mãos devem ficar encardidas de tanto sorverem todas as rugas sedimentadas com o passar dos dias.
É a velha velhice a dar impetuosos sinais de vida. A sonhada (ou não – mas isso não interessa) velhice. A que toca, com a ponta dos dedos, na matinal frescura com que os dias se reinventam.
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