23.10.09

Tento na língua?

O treinador da equipa argentina, Maradona, dirigiu umas palavras consideradas ultrajantes aos jornalistas no fim de um jogo de futebol: "que la chupen, que la chupen toda". Estava revoltado porque os jornalistas tinham sido impiedosos quando a equipa perdera uns jogos. Agora, os senhores que governam o futebol querem punir Maradona com severidade por ter sido desbocado, rude, mal-educado. Por acaso discordo: o homem pediu desculpa às senhoras que estavam presentes e orientou o convite para os varões.

Fiquei apreensivo com Maradona. A menos que tenha entendido mal o repto aos jornalistas, tenho a impressão que não se estava a referir a sorvetes. Ora – e aqui vai o meu incómodo – o treinador argentino só incluiu os jornalistas machos no exercício de degustação. Homossexualidade reprimida? Logo de um dos maiores astros de sempre da bola, que também deixou atrás de si um rasto de conquistas femininas? Já nem menciono a oclusão mental dos jornalistas a quem as palavras iradas de Maradona se dirigiam: calados, estavam ali em cachos e só lhes faltava empunhar a bandeira multi-colorida da comunidade gay. Que se saiba, não houve um único jornalista que viesse defender a honra (e a masculinidade, por sinal) ofendida. Podem não ter chupado nada, mas comeram e calaram.

Os engravatados que mandam no futebol querem mão pesada por causa do desbragamento verbal da celebridade argentina. De tudo isto, uma pergunta atirada ao calhas: faz bem a este mundo teimar em ser um lugar repleto de cenários engalanados pelo "faz-de-conta"? Dir-me-ão: há palavras que se dizem na intimidade de um grupo de amigos, jamais em público. Contraponho: por que somos educados no tento na língua se, escondidos pelo invólucro do à-vontade, nos é permitida a incontinência verbal? Admito a verberação dos institucionalistas do costume: de cabeça a acenar em tom de reprovação, dizendo que a socialização das pessoas – ah, a bendita socialização – nos obriga ao decoro.

Desconfio que um dia destes ainda inventam uma polícia de costumes para patrulhar o que dizemos na intimidade. Microfones semeados pelos compartimentos todos da casa e um chip subcutâneo que faculta aos zeladores um registo integral de todas as palavras que se nos soltarem da boca. Só por precaução, só para não treinarmos o hábito de sermos desbocados. Como caução de que não proferimos palavras malditas, palavras inconvenientes, palavras brejeiras quando uma numerosa audiência estiver de olhos e ouvidos em nós. 

Regresso ao futebol: os aprendizes de tiranetes que ensaiam carreira política no dirigismo do futebol ainda não se lembraram de passar a pente fino o que sai da boca dos intérpretes do jogo enquanto ele decorre. Nem era preciso instalar potentes microfones: chegavam os peritos que conseguem ler nos lábios. As grosserias e obscenidades ditas por jogadores e treinadores enquanto estão imersos na emoção do jogo são tão frequentes que, pela bitola da possível condenação a Maradona, os "pecadores" que enxameiam a boca com palavrões que não se recomendam às criancinhas também deviam levar punições pela medida grande.

Isto tudo é tão patético que – li algures – uma mente iluminada entre os aprumadinhos dirigentes chegou a propor a retirada do troféu de melhor jogador do mundo que Maradona embolsou nos seus tempos áureos. Tenho a impressão que Maradona fez um convite antes do tempo e não se devia dirigir só aos jornalistas que lhe andaram a morder nos calcanhares: saberia lá ele que o convite para a degustação fálica cairia que nem uma luva nas virgens pudicas que dirigem o futebol mundial? 

O episódio sugere um fluxo voraz de sensações. Imagino a desfeita sentida pelos marialvas das Pampas, aqueles que consagraram a arte da sedução feminina pelo passo doble do tango: aquilo que Maradona estava disposto a dar aos seus queridos inimigos jornalistas não é coisa que um homem, um homem valente e conquistador de damas, queira fazer com outro homem. É por isso que estranho a passividade do lobby gay, que silenciou um excitado aplauso ao treinador da Argentina. E, de caminho, também estranho o mutismo das feministas frígidas, que perderam uma oportunidade para denunciar a bestialidade do macho alfa que confunde sexo com humilhação.

Maradona, continuas a dar cartas e já não tens uma bola nos pés!

1 comentário:

Milu disse...

Não podia estar mais de acordo consigo.
Considero esta reacção de Maradona como que um desabafo que, mais do que tudo, foi revelador de quanto ele pode ser um ser humano completo e genuíno - a abarrotar de defeitos e de qualidades, como todos nós, afinal. Há tanta coisa menos louvável, que nós fazemos e dizemos quando cuidamos que ninguém nos observa! Mas é isso mesmo que nos é normal, e que faz de nós pessoas, dignos habitantes deste mar de lágrimas que é o nosso mundo! E não vale a pena haver quem pretenda convencer-me do contrário, envergando o manto da pura virtude, que lhe pode assentar muito mal. A história da humanidade deu-nos a conhecer o suficiente para dela retirarmos a ilação,de que quanto mais poderoso se é, seja em que sentido for, maior é a podridão em que se vive mergulhado.