Na semana passada, a tropa andou entretida em "exercícios de combate". À falta de outro préstimo, os generais fecham-se num gabinete a congeminar cenários de guerra. Quanto mais não seja, para provarem que merecem os salários. Vi as imagens, pois a comunicação social foi convidada a registar a valentia, a destreza e a disponibilidade dos actuais heróis da pátria para defenderem a integridade do território.
Tenho a impressão que os generais e arremedos de Rambo que se alistam no exército andam mergulhados em profundas depressões, agora que o mundo mudou e as guerras espúrias de outrora já só pertencem a uma história que não deixa saudades. Ainda por cima, os políticos (os ingratos) acabaram com o serviço militar obrigatório – essa fantástica ponte levadiça que, depois de içada, fazia de nós homens em toda a plenitude. Andam mal as forças armadas. É um pouco como a igreja, que de ano para ano vê os templos menos visitados por crentes e se inquieta com a crise de missões que reduz o contingente de padres de tenra idade.
Aquelas imagens dos "exercícios de combate" perto da Figueira da Foz deixaram-me desassossegado. Os tropas corriam que nem uns desvairados atrás de um potencial "inimigo" que agora – é o mundo a mudar – já não é um exército de outro país mas um grupo de terroristas. Para começar, alguém devia explicar aos pomposos generais que estamos no século XXI e que o mundo mudou mais do que julgam os crânios da estratégia militar: "inimigo" é um conceito, por estes dias, sem contacto com a realidade. Sobretudo se nos lembrarmos da irrelevância que somos: por acaso haveria algum movimento terrorista a escolher este cantinho onde termina a Europa ocidental para desferir um golpe qualquer com o mediatismo dos ataques que são abalos telúricos aos alicerces da "civilização" como a conhecemos? Dirão os especialistas – aqueles que se entretêm com fantasias militares e os profissionais do ramo, estes em defesa do seu sustento – que no mundo tão incerto todos os cenários ganham probabilidade. Já sabemos que em todas as profissões há lugar ao corporativismo e à transformação de argumentos em pretextos quando os dias correm desfavoráveis.
Há nas simulações de crise militar algo que me perturba: as manobras são meticulosamente preparadas, seguindo um guião que faz lembrar uma peça de teatro. As acções do "inimigo" são antecipadas, como se fosse possível adivinhar o que o "inimigo" faria se por acaso estivesse a boicotar a lusitana tranquilidade. Já nem menciono a estranheza de meter colegas da tropa a fazer de conta que são terroristas "inimigos"; por maior zelo que ponham no papel que desempenham, não serão tão aguerridos e imprevisíveis como o "inimigo" (se algum dia ele existir). Eu diria ao conjecturado "inimigo": já que estas espectaculares simulações de combate da tropa são anunciadas, com convite à comunicação social e tudo, estejam à coca; sorrateiramente, ou disfarçados de jornalistas, passem pelas manobras militares e aprendam como se comportaria a nossa tropa se a pátria fosse atacada.
Estas manobras servem para entreter a tropa fandanga, que assim tira uns dias de folga da inércia a que está habitada na clausura dos quartéis. Pelo caminho, aproveitam para tirar a poeira às vetustas armas guardadas no armazém e desenferrujam o dedo que prime o gatilho. Por uns dias, os tropas fervem com a excitação do muito faz de conta que neles se faz uma realidade desejada. A pátria, essa, fica sossegada ao ver as imagens da bravura dos seus homens fardados, ali tão dispostos a dar o peito às balas em defesa da pátria. Sabemos que ninguém ousará incomodar a placidez a que estamos habituados, pois o "inimigo" arrisca a levar uma sova das antigas. No rescaldo das operações, sobram as despesas orçamentadas. Como convém, imputadas aos impostos que pagamos.
Só no fim é que me lembrei que em tempos dei umas aulas para futuros auditores de defesa nacional, um curso com a chancela das forças armadas. Já não fui a tempo de retroceder. Se me lerem na tropa (cenário improvável), disto tenho a certeza: que jamais serei professor naqueles cursos, tal como padre nenhum convidará para uma prédica o escritor lusitano que há anos ganhou o Nobel da literatura. As heresias são imperdoáveis.
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