30.11.09

Perigoso andar pelas ruas de Lisboa



E não é pelos assaltos, ou pela insegurança nocturna, ou porque as ruas estejam apinhadas de mendigos do leste europeu que, diz-se, se servem do estatuto para perigosas manigâncias. Nada disso. Vindos do nada, podem irromper a uma velocidade alucinante "automóveis oficiais" com grande chinfrineira a avisar da importante figura que segue tão apressada. E pode acontecer, como aconteceu há dias, que se estatelem num acidente de viação de que os ocupantes levam medalhas para contar aos netos.

Onde está a segurança de quem vai na rua e tem o azar de dar de caras com os malabarismos de aprendizes de Fittipaldi que ninguém persegue? Coisa irrelevante que cede perante o atraso, a urgência e a extrema importância de quem pode atropelar cem regras do código da estrada ao fim de um dia. Já não se pode andar sossegado pelas ruas da capital. Ainda se queixam os nortistas dos perversos efeitos do centralismo do Terreiro do Paço. Aqui do Porto, reforço a exortação: regionalização não, obrigado. Depois tínhamos que apanhar com os representantes da região em vertiginosas corridas pelas artérias do Porto, sempre com o coração ao pé da boca até que nos calhasse em azar estar num cruzamento em que duas "viaturas oficiais" faziam ouvidos de mercador a um semáforo vermelho e chocavam com estrépito. Gosto de andar por estas ruas e saber que não apanho um desvairado "veículo oficial" em derrapagem descontrolada.

Quando li a notícia num local insuspeito de dourar a pílula ao governo (não a RTP ou um daqueles órgãos de comunicação social do "amigo Oliveira"), uma testemunha do acidente disse que foi atingida por alguns destroços dos carros entretanto feitos sucata. (Juro que não há ligações conspirativas; já não se pode usar a palavra sucata?) Outra pessoa confirmou que o inspector das polícias terá partido os queixos porque não levava o cinto de segurança e foi projectado. Não digo que esta gente se acha tão importante – tão importante que mergulha na sinecura e no oceano de privilégios que os faz andar de nariz empinado, tão senhores da sua importância – que deixa para os outros o respeito pelas regras? Ponto da situação: não chegava andar a uma velocidade assassina por ruas onde o código da estrada só permite circular a cinquenta quilómetros/hora; ainda por cima, o figurão viajava sem o cinto de segurança.

A rapidez digna de provas automobilísticas com que as "viaturas oficiais" rompem as ruas não é de agora. Quem nunca foi ultrapassado numa auto-estrada por automóveis escuros, escoltados por motas da brigada de trânsito, os pirilampos acesos que afastam a maralha do caminho, tragando o asfalto a mais de duzentos quilómetros/hora? Mal anda isto     que, há que o lembrar, se diz um "Estado de direito", e condescende com a marosca de aos figurões serem permitidas excepções que na gente comum são duramente punidas.

Eu não quero saber que o senhor ministro vá atrasado para a função. Muito menos me importo que o senhor ministro esteja mergulhado em mil e um afazeres que infernizam a sua agenda. Quero que o senhor ministro vá à mesma velocidade que eu posso circular em estradas e auto-estradas. Do fundo da ingenuidade que me amacia, gostava de ver a "comitiva oficial" parada na berma da auto-estrada quando fosse apanhada em excesso de velocidade, e de cada vez que o senhor ministro fosse apanhado na largueza do banco traseiro sem o cinto de segurança apertado. Gostava de ver o polícia de serviço a tirar identificações, a verificar documentos, a passar uma multa.

Gostava que tudo isto não fosse uma ilusão. E nem é que me interesse muito a queixada do inspector das polícias, mas se tudo isso não fosse uma ilusão ao menos o senhor todo-poderoso inspector não estava cheio de dores numa cama do hospital onde foi operado à fractura nos queixos. Menos mal enquanto as "viaturas oficiais" andarem a brincar aos carrinhos de choque entre si e não envolverem mais ninguém.

27.11.09

“Técnica de relaxamento”


Num preguiçoso passeio de zapping pelos intermináveis canais da televisão por cabo, aterrei num canal que se chama Zen. Sucediam-se imagens de praias paradisíacas, daquelas que enchem folhetos das agências de viagens. Sempre meticulosamente despidas de gente, como se fosse possível à horda de turistas que lá desagua terem uma praia deserta. Logo a seguir, continuaram as imagens de uma água azul-turquesa, suponho que daquelas águas tépidas de que não apetece sair, as areias brancas e muito finas e uma barreira de coqueiros a semear a sombra que protege do intenso, húmido calor.

Começava um programa sobre "técnicas de relaxamento". Uma voz suave e feminina propunha-se ensinar a "técnica de relaxamento" que desata os nós da insónia. À medida que se repetiam as pacatas imagens das praias que por estes dias de anunciada invernia já fazem inveja (nunca estamos satisfeitos com a estação dominante: nem sequer temos inverno e já apetecia passar uns dias num daqueles lugares exóticos), a voz balsâmica ensinava os truques para um sono retemperador assim que o corpo beijasse os lençóis da cama.

A voz feminina exortava a que fizéssemos mais ou menos isto: "ponha-se de pé, bem no meio do compartimento da casa que tiver maior espaço. Grite. Grite bem alto. Não se atemorize: grite com toda a força que os pulmões e as cordas vocais permitirem. Se não se sentir à vontade com o grito, cante qualquer música, mas cante bem alto. Precisa de expelir todas as energias acumuladas dentro de si. Gritar ou entoar a música em voz alta são o melhor remédio para expulsar as energias que retardam o sono. De seguida, termine a expulsão das energias de que já não precisa abanando com vigor os braços, as pernas e a cabeça, de um lado para o outro. Não se acanhe se achar que os movimentos são desengonçados. Quanto mais desengonçados, mais energias inúteis vai libertar. E mais depressa vai adormecer".

Tenho a impressão que esta "técnica de relaxamento" deve valer para quem vive no meio do campo, numa casa isolada do resto. Para a imensa maioria que vive nas cidades, apinhada em apartamentos com excelente qualidade de construção – daqueles que há agora com um isolamento acústico de primeira água, de tal forma que um simples garfo caído no andar de cima troa como se fosse uma bomba a rebentar no tecto –, a "técnica de relaxamento" deve servir para arranjar muitos inimigos entre a vizinhança. Ou então para sermos vistos como dementes que urram furiosamente à hora do deitar.

Também tenho a impressão que duas pessoas que acabam de juntar os trapinhos não podem embarcar nesta bizarra "técnica de relaxamento". Nesses dias de aprendizagem mútua, em que uma febril paixão une os corpos num frémito diário, a descoberta de estranhos urros ao deitar talvez actue como um icebergue a poisar na relação. O que diria um dos apaixonados se visse o outro a contorcer-se numa ensandecida coreografia de gestos disformes do corpo antes de irem para a cama? Aposto que não é o melhor prólogo para uma noite de tórrida paixão.

Às duas por três, pus-me a pensar: e se, um dia destes, ensaiasse esta "técnica de relaxamento"? Não é que dela careça, pois as insónias deixaram de me visitar desde a adolescência. Era só para experimentar a sensação, só para confirmar – como desconfio – que estas "técnicas de relaxamento" não passam de um embuste. E, apesar de não ter vizinhos nos dois andares de cima, não consegui imaginar a função. Admito: talvez por não precisar de qualquer "técnica de relaxamento" quando chega a hora do deitar. Ou será apenas porque me fartei de rir da minha própria figura triste, como se de repente saísse de mim e fosse espectador da minha função de relaxamento?

Sabe-se lá se não se perdem carreiras promissoras no bailado contemporâneo, ou tenores de ópera, ou vocalistas de bandas de heavy metal (depende do timbre da voz) só por as pessoas se intimidarem diante da estranheza do que lhes é sugerido nesta "técnica de relaxamento".

26.11.09

O pensamento rebelde



Esplendorosas são as palavras que soam estranhas à multidão. As sedutoras ideias, aquelas que pouca gente conhece, as que se expõem à condescendência de quem olha para uma aberração com piedade. Doem, e doem imenso, as avenidas alindadas pelo pensamento corrente, o pensamento que se agiganta na adesão das maiorias. Desse pensamento, dir-se-ia trilhos onde as rodas da acção têm que caber. Fora desses trilhos, o deserto, a estultícia, uns vestígios de raciocínio esparso que se amontoam numa pilha indiferenciada. Neles não se revendo a maioria, merecem o ostracismo intelectual.

Entre as margens do que se convencionou nomear "politicamente correcto" sobra terra queimada. Qual será o maior golpe na auto-estima de quem pensa essas ideias? A recriminação por ser tutor de mente retorcida? Ou ser olimpicamente ignorado, remetido para o canto onde se avolumam, na sua ínfima pequenez, todas as irrelevâncias que ganham esse estatuto por singular decreto dos senhores das verdades? Tenho um palpite: ser ignorado é um punhal cravado até ao fundo das entranhas, um punhal invisível e, talvez assim, letal. O pior dos sintomas. Ao mesmo tempo, uma consolação interior. Não chegam a ver os dedos em riste espetados mesmo à frente do rosto, enquanto vozes (ora indignadas, ora iradas) esbracejam o roteiro da "moral" violada pelo pensamento dissonante.

Às vezes, só por espírito de contradição, uma incontrolável pulsão de ser só pela diferença. Fermentado por uma vontade insubmissa de demolir a envenenada tralha apresentada como viveiro de ideias aceitáveis. É quando uma interrogação se faz à maresia que polui os pensamentos aprisionados nas hesitações: a dissonância, a convicção da rebeldia, apenas um frémito para pontuar a diferença só pela diferença? Ora, as ideias querem-se na sua genuinidade. Quando as causas rebeldes desmerecem o seu contrário apenas pela bitola da antítese – a antítese pela antítese – serão ideias embebidas no cálice da benta água genuína? Ou um excurso de posições firmes que se enraízam à passagem insidiosa dos imperativos categóricos do pensamento convencional?

Este é o dilema cortante: não basta chamar a si o rótulo da rebeldia, mostrar, com mal disfarçada vaidade, alguma erudição emparelhada nas ideias que se extraem da camisa-de-forças onde vogam os padrões estabelecidos. As ideias fora do comum têm que abrir os seus próprios portões para não se encarcerarem no hermetismo mental tão criticado nos seus contrários. Só que então esbarram num paradoxo indeclinável: a abertura mental ao que voga nos seus antípodas é a negação dos enunciados. A flexibilidade que as distingue do monótono, larvar rugido das vulgares ideias consagradas é como dar o flanco às ideias politicamente correctas. E assim que as habituais ideias de todos conhecidas lançam o arpão para apanhar o flanco, é como se um organismo fosse invadido por virulenta doença sem cura.

O que interessa? Ser pela diferença por não nos revermos nas lamacentas águas turvas que enjoam os sentidos, as águas tomadas pelo pensamento dominante? Nem que nisso não haja espontânea adesão a ideias, apenas uma reacção adversa por antinomia? Peca o ausente discernimento quando às portas bate, teimoso, um demónio que contagia fragmentos de radicalismo. Nestes tempos de patrulha de pensamento, prefiro inclinar-me para as radicais, diferentes ideias. Nem que amiúde a lucidez fique à míngua entre os escombros da endeusada coerência, da coerência que se quer em nós como ponteiro que orienta as deambulações da bússola.

Esta é a maior abertura: admitir que transitamos por terrenos onde as ideias se fertilizam em árido e pedregoso solo. Os pés tropeçam, frequentemente. E admitem que tropeçam, corrige-se o passo doravante só para evitar a repetição de passos em falso. É terra desagradável para escanhoar as ideias fora do comum. Ao menos, há humildade intelectual para reconhecer a pulsão de quem se mobiliza, em jeito de reacção, contra a desassisada arrogância dos sacerdotes do pensamento estabelecido, da sua miraculosa infalibilidade. Percebo-os (sem falsa condescendência): prouvessem os flancos expostos à água corrente que vem do exterior, como podiam afiançar a tão sagrada calmaria, a endeusada segurança a que os adoradores do sistemático dão prioridade?

Eu prefiro cabeças a pensar. Por si mesmas. Não cabeças resignadas à anemia do pensamento, limitando-se a ser acríticas seguidoras por terem na estabilidade o maior dos valores.

25.11.09

Henry & Wigan, Lda.



Henry, o avançado francês, ajeita duas vezes a bola com a mão antes de a passar para o colega que marcou o golo. O golo que pôs a França no campeonato do mundo. O Wigan, que joga na primeira divisão inglesa, apanhou uma cabazada como já não se vê por estes dias: 9-1.

Henry, num insólito acto de franqueza, confessa o crime desportivo que um árbitro com carências oftalmológicas não viu. Defende, contra os interesses da sua equipa, que o jogo devia ser repetido para retroceder a batota. Os interesses instalados, os senhores que, como em todo o lado, quando representam um sistema instituído se recusam a tomar decisões que representem abalos telúricos devastadores, avisam: impensável, a repetição do jogo. Sancionam a batota, numa edificante lição para quem os escuta. Aos irlandeses – as vítimas deste crime desportivo – só chorar toda a raiva a que julgam ter direito, uma vingança servida no éter.

Os humilhados jogadores do Wigan querem compensar os adeptos pela vergonha que passaram. Estão dispostos a reembolsar os adeptos que foram até ao estádio adversário ver, um atrás do outro, nove golos na baliza onde estava o seu guarda-redes. Acreditam neste acto simbólico. Lá no fundo, todos os jogadores da equipa que ficou conhecida pelas más razões sabem que a devolução das libras gastas no infausto bilhete fica longe de recompor a humilhação dos adeptos. Ao menos, estão dispostos a compensar a sua devastação interior – todos se riem deles, motivo da chacota geral. Os acabrunhados jogadores, já derreados pelo golpe quase fatal na honra por figurarem nos anais de uma das derrotas mais pesadas na memória no campeonato, ainda foram arranjar energias para recompensar os adeptos pela tremenda frustração com que saíram do estádio adversário.

Tenho para mim que há muita gente, dentro e fora do meio, muito preocupada com as reacções de Henry e dos atletas do Wigan. Os cultores da lógica dos resultados, aqueles mourinhos e outros que desonram o nome de gregos filósofos, os que admitem, com impudência, que o que conta é ganhar sem saber de que forma, terão sido os primeiros a atirar-se ferozmente a estas ilhas de honradez. Denunciam os líricos lampejos de integridade por abrirem precedentes que se voltam contra a sua maravilhosa forma de estar no mundo. Essa honradez, a honestidade de quem se denuncia em público como fautor da falsificação de um resultado, a probidade de quem quer compensar a pavorosa humilhação dos que os seguem com religiosidade, atávicos comportamentos que merecem feroz combate.

Estes lampejos são, até para o niilista empedernido, a prova de que nem tudo é sombrio no mundo habitado. Ainda há ilhas exemplares, rodeadas pelos tubarões da indecência, um hino melodioso aos ingénuos e aos líricos que teimam na condição. Talvez o repto a que interessa olhar: não os lamentáveis anjinhos que se passeiam na indolência da vitimização, revirando os factos convencidos que conseguem caminhar sobre a água, convencidos que somos todos tontos a quem se deita areia para os olhos e com duas palavras vãs e estamos arrumados a um canto, destituídos de argumentos.

Há por cá muita gente que devia pôr os olhos em Henry e no Wigan. Andam inflamados, alguns até desorientados, pois o "guru" (do momento) está metido no enésimo escândalo que queima a sua reputação. Como é gritante o contraste ao desviar o olhar para águas não pantanosas, onde se repetem as imagens da falcatrua de Henry que o próprio queria reverter e o ar cabisbaixo dos jogadores do Wigan que querem ir ao bolso para recuperar a dignidade dos adeptos. Por cá, essa gente inflamada e desorientada faz as vezes de mastins da justiça. Desqualificam os tribunais, apontam a artilharia para um juiz que – julgam, tão desorientados andam – deve ser o mais recente intérprete da animosa cabala que dizem estar montada para o "assassinato político" do querido líder.

Deviam aprender. Que a justiça e a política são altares separados, estanques um ao outro. E, sobretudo, deviam aprender com Henry & Wigan, Lda.

24.11.09

O leste que há em nós



Os estereótipos que se esbarram na nossa incredulidade. Porventura são os estreitos canais mentais por onde vagueia, distraído, o pensamento distraído, são esses canais que constroem os estereótipos. Depois, chega uma interrupção na distracção para entendermos o erro de perspectiva. É como se passássemos em revista uma imagem usando as lentes erradas. Que desfocam a imagem observada.

Há anos, entrei na Polónia de comboio vindo de Berlim. Ainda a Europa de leste era um infante na União Europeia: nem dez dias tinham passado desde a entrada de dez países de leste na União Europeia. A distância entre a cosmopolita e avançada Berlim e a fronteira onde começa a Polónia percorre-se de comboio em pouco mais de uma hora. Naquela altura, quando saí do comboio alemão e cruzei a fronteira, do outro lado estava outro mundo. Foi quando o pensamento distraído se entreteve nos estereótipos tão fáceis: a Europa muito atrasada neófita na União Europeia que, ufana, se olha ao umbigo como paradigma de desenvolvimento. As duas Europas artificialmente misturadas numa só?

De repente, muitas imagens retiradas de filmes de leste percorreram a tela desfiada diante da mente. As imagens de desleixo em que as coisas públicas caíram. A imensa sujidade pelas ruas, edifícios degradados, encardidos pela passagem do tempo e pelo descuido das gentes. Um testemunho da desesperança que encontrara residência naquelas terras. E pessoas envelhecidas; parecia que tinha ido desaguar a um lugar tomado pela velhice. Também os velhos eram gente encardida, as mãos imersas em sujidade, as unhas sem trato como armazém dos vestígios dos trabalhos duros a que se entregaram durante anos e anos sem fim (e ainda teriam essas incumbências, agora que aparentavam idade suficiente para estarem na reforma?). Olhavam-me de cima a baixo. Não me senti incomodado. Aquela reacção, que parecia desconfiada, entendia-a como apetite pela curiosidade. O único homem jovem que ali apareceu, uns minutos antes da partida do comboio para Gorzow Wielkopolski, tinha outro arejamento mental: meteu-se à conversa comigo, atalhando logo para o inglês. Foi ele que deu as indicações que mais ninguém soubera dar (ou que eu não soubera entender naquele atabalhoado esforço de linguagem gestual) sobre o pedaço final da viagem.

Os estereótipos continuavam, incessantes, a povoar a febril decomposição do imaginário de leste. O comboio decadente e lento. Desconfortável e imundo. Retive o cheio nauseabundo (e logo eu, já nessa altura em decaimento das propriedades olfactivas). Uma hora depois de ter entrado na Polónia, chegava a Gorzow Wielkopolski. Uma cidade pequena, mas alindada, verdejante. Ainda com muito lixo a esvoaçar pelas ruas, ainda com os mesmos rostos cerrados, os mais velhos com rugas profundas como se fossem sinais de um passado desperdiçado. Queria acreditar, por conveniência ideológica: desperdiçado o passado no absurdo totalitarismo comunista. Por causa do absurdo totalitarismo comunista.

Os mais jovens eram tão diferentes. Espíritos abertos, uma fervilhante vontade de conhecimento. Sobretudo do conhecimento dos vestígios que lhes trouxessem o contacto distante com sítios diferentes. Era tão estranho, porém, aquela plateia de estudantes sedenta de me ouvir falar, aqueles alunos que só pararam de fazer perguntas quando a responsável pela universidade anunciou com voz firme que tínhamos ultrapassado, e muito, o tempo previsto para a aula. Era estranho: sentia-me a pessoa que chegava da civilização, ou pelo menos a pessoa que vinha de um lugar que conhecia a prosperidade.

Hoje, à distância de cinco anos, quando estas recordações ecoaram, consegui combater o pensamento distraído que evoca estereótipos. Todas aquelas imagens da Polónia repetiam-se na cabeça. E logo outras, muito parecidas, se intercalavam: as da ruralidade impregnada que é o património genético da portugalidade profunda. Se fosse possível colocar as imagens lado a lado, como se faz em reportagens cuidadas, digo que se não notariam grandes diferenças entre aquele cheiro de Polónia encostada à rica Alemanha e o Portugal ruralmente profundo. Afinal, onde é o leste?

Cinco anos depois, a Polónia está quase a passar à nossa frente no ranking que hierarquiza os países da União Europeia pelo (falível) PIB. Afinal, onde é o leste? Será no leste que temos dentro de nós?

23.11.09

Pelo abismo



Amigos de infância que saltaram a varanda que separava do abismo. Já cá não estão. Vou sabendo que a frágil condição em que se empenharam diluiu resistências. Já foram. Sugados pelo vórtice do abismo para que saltaram.

Há uma miragem escondida nos abismos que acenam, tão sedutores? É uma colossal incógnita que vegeta na escuridão que se alcança de cá de cima, ao fitar a profundidade interminável do poço que parece ter força gravitacional. Renunciando às cautelas de quem os avisa, alguns mergulham na incerteza do abismo. Por cansaço da mesquinhez que os rodeia, a mesquinhez que definha. Ou por excitação da juventude que evapora os vestígios de sensatez, empurrando para o precipício de onde nada se alcança. Vemo-los, todos os dias, encharcados no suor que ganharam por tentarem, sem conseguirem, extrair-se aos tentáculos do abismo. Almas caridosas fazem a sua função: avisam do passo em falso. Já tarde. A descida aos fundos é uma viagem de sentido único.

O salto descomprometido, ou apenas um salto que se confere depois de arrumadas as muitas hesitações, e quando dão conta a força da gravidade já os empurra na direcção do fundo. Alguns combatem a descida aos infernos? Outros entregam-se aos prazeres que julgam encontrar quando o abismo encontra o seu fundo? Tacteiam as paredes que enjaulam o abismo por onde descem, num esforço vão de travar a marcha? Ou deleitam-se com a queda livre, o ar gélido a esbarrar na cara e a despenteá-los furiosamente?

Era fácil sentenciar o desvario dos que mergulham na escuridão de onde sabem que não regressam. Era fácil fazê-lo pelos que mantêm lucidez e têm a certeza que o percurso abismal é a ceifa fatal. Fácil, mas errado: as pessoais vidas amanham-se na sua intimidade. Mal seria se houvesse norma que criminalizasse os desvarios dos que se entregam à demência do abismo. E nem o digo por inutilidade da norma: uma vez encerrados no hospício, nas profundezas onde ninguém consegue chegar a menos que lá fique aprisionado, quem os podia condenar se nem sequer ouvem as censuras dos mais chegados, a censura colectiva que a muito consciente sociedade atesta?

Talvez saibamos, os que ainda vogamos nas águas da lucidez, que são nocivos os efeitos dos abismos que se insinuam. Sabemos, por experiência alheia. Olhando aos cadáveres que emergem à superfície, rejeitados pelas forças ocultas do abismo que não querem ser um cemitério onde se sepultassem os seus adoradores atraiçoados. Concluímos que a estadia abismal teve um fatal ocaso. Juntamos as pontas soltas e damos por assente que o salto cego num abismo não tem remissão. Já não haverá tempo sequer para o arrependimento enquanto o corpo vai em cambalhotas desordenadas contra as paredes musgosas por onde escorrega o precipício.

Sabemos tudo isto, tão penhores das certezas quando em nós julgamos estar hasteada a lucidez. Só não sabemos se detrás da diáfana bandeira não se escondem mundos fantasmas, sedutoramente deliciosos. Não sabemos se a descoberta desses quartos paralelos mas escondidos não remetia a espessura das coisas (como as conhecemos) ao domínio da ilusão. A vultuosa factura, a que paira com os pingos todos da incerteza, detém-nos a tempo. Rodeamos o abismo. Espreitamos, só para ver se as hesitações se desfazem numa derradeira pulsão, ou para convocar o necessário acto de coragem, aquele suster de respiração seguido da contagem até três que é o pontapé interior que empurra o corpo para o precipício.

Como é profundamente errada a condenação dos que se aliviam das insuportáveis dores atirando-se para um abismo. Quem somos para nos arvorarmos juízes das vidas que pertencem a quem delas tem o único leme? Somos um rotundo nada, uma mera insignificância, metidos na impossibilidade de sermos a vida dos outros. A eles, aos que se extasiam na embriaguez do vertiginoso precipício, um sentido respeito.

20.11.09

Anne Clark, "Psalm"

Para o texto ali em baixo.

As angariadoras da fé

Batia a porta do carro, depois de o arrumar num lugar apertado. Mesmo ao lado, três pessoas em, diria, íntima conversa. Duas mulheres idosas pareciam segredar a um adolescente, daqueles que agora há com aspecto descuidado e ar rebelde. Quando pus os pés no passeio ouvi as mulheres a advertirem o jovem que ele tinha que encontrar deus, com aquela entoação de quem prega um ralhete na criança que acabou de asneirar. Eram angariadoras de almas tresmalhadas pelos obscuros caminhos da fé ausente. Enquanto uma delas, a mais atarracada, crescia para o longilíneo adolescente e emprenhava os ouvidos com a imperatividade de deus, a outra dedilhava um livrinho minúsculo, com letras que só se viam à lupa.

Segui o meu caminho. Antes de dobrar a esquina, espreitei para trás. O conciliábulo da fé perseguia os seus trâmites. As velhas teimavam em arregimentar aquela alma para o rebanho de deus. O jovem, coitado, aturava com paciência, talvez confundindo a paciência com educação, ou a educação com cortesia. Logo a seguir liguei o iPod. Instrui-o para escolher as músicas em modo aleatório. E que terrível coincidência: nos ouvidos, uma música (a que aparece ali em cima) que faz a anti-apologia de deus, ou das várias personificações divinas consoante os diferentes credos.

O meu ateísmo não tem problemas com deus, no sentido de que o ateísmo é a negação de deus. Mal de mim se aspirasse a provar aos crentes que estão enganados, que deus não existe. Não chega a ser um problema, como o é para alguns sistémicos anti-clericais. Já me incomoda a urgência de conquistar almas desviadas para os bons caminhos da bondade divina. Há gente que não se contenta com a expressão da sua individual fé; querem convencer os que se ausentaram da fé, ou os que nunca por lá andaram, de que deus é uma inevitabilidade e que as nossas vidas são incompletas se o não reconhecermos. Eu compreendo que lhes faça espécie como uma criatura (que para eles é criatura de deus) negue a entidade divina que lhe deu vida e imprime sentido à sua existência. Gostava que tivessem arejamento mental para aceitarem que há quem não se reveja no catecismo em que deus é o protagonista de todas as acções.

Tanto me incomodam os que ungem os outros com a necessária fé como os que se exaltam na demonstração pública da inexistência de deus. E tudo isso me incomoda porque estão enganados quando se envolvem numa actividade que é uma intrusão na esfera íntima de cada pessoa, como se fosse uma competição entre o bem o mal. O maior desconforto é quando reivindicam a verdade, piamente convencidos que a sua verdade é a verdade que os que militam no lado oposto têm que aceitar. Se ao menos percebessem que a imposição de uma verdade, assim enquistada no seu imobilismo, é uma impossibilidade material. É que a verdade de uns é vivamente negada por outros. E vice-versa.

Eu gostava que me saíssem na rifa duas velhinhas como aquelas que percorrem as ruas na angariação de tresmalhadas almas. Só para perguntar se por acaso gostariam que alguém propusesse a sua pessoal "desevangelização". Heresia, diriam de supetão. Talvez o blasfemo apanhasse com um sapato na cabeça, ou levasse com o minúsculo livrinho no canto do olho. A lobotomia intelectual não deixa ver para além dos muito apertados quadros mentais. As angariadoras da alma, na sua diária perseguição de almas ensombradas pela vacatura de deus, prosseguem a evangelização rua fora. Não sei se lá na igreja lhes prometeram redenção total por cada reconvertido, ou se têm garantido lugar celestial por cansarem as pernas na actividade de quem espalha a "palavra do senhor".

Admiro a coragem das angariadoras de crentes. As pernas cansadas pela idade parecem revigorar-se por irem à caça de gente que não deixou o bom deus entrar, ou de gente que a certa altura da vida o expulsou de dentro de si. Mas admiro-as pela errada razão: só por se prestarem a um lamentável papel, e de imaginar que devem ouvir muitas respostas agrestes quando o insistente convite para abraçar a fé é declinado por gente já incomodada com a teimosia intrusiva. Deviam perceber que a fé não se ensina nem se convence.

19.11.09

Ah, o idealismo da juventude…


Também há gratas surpresas. Elas irrompem contra o entorpecimento dos dias cinzentos. Despontam por entre o céu plúmbeo que, de tão persistente, entristece. Afinal, as gerações mais novas não são apenas um bando de gente alienada, indiferente ao que a rodeia, a rondar os alvores da iliteracia. (Repare-se nesta acentuação – "mais novas" – que tem um significado que lá mais para a frente será desvendado). Há uns raios de luz que ensinam, primeiro, que o alçapão das generalizações pode ser uma cortante armadilha e, segundo, que há gente muito jovem que observa o mundo com atenção, lê muito e tem uma perspicácia que se julga ausente nas gerações mais novas.

É quando somos jovens que a força de viver borbulha com toda a intensidade. É quando somos jovens que o voluntarismo se distingue. É curioso: o voluntarismo costuma andar de mão dada com doses de robusto idealismo. Não digo que não haja idealistas entre gente mais velha. (Eu acho-me um idealista – ou diria, para ser mais rigoroso, alguém preso a certas utopias; isso explica que me recuse a admitir que já não faço parte das gerações jovens?) Só que é mais fácil encontrá-los entre pessoas mais jovens, que despertam todos os dias para a aprendizagem do mundo.

Deve ser doloroso o idealismo voluntarista que ferve nas suas veias. Quando os ouço a destruir de cima a baixo as coisas como elas são, o mundo como aparece diante dos seus olhos, o mundo que deploram na jactante hipocrisia que nele detectam, divido-me entre a condescendência e a angústia que compartilho com eles. A condescendência não é pose superior; nem sequer alvitre de quem já andou pelas margens desses idealismos (ou, porventura por recusa em admitir algum envelhecimento, nunca deles se ausentou) e tem consciência da imbatível espessura das coisas na sua forma real. Sem ponta de ironia, é de admiração que se trata. Admiro os mais novos por serem tão militantes dos idealismos que percorrem as entusiasmadas palavras que proferem.

Lá mais para a frente também vão perder o rasto à idade em que o sangue anda sempre fervente nas veias. Também vão notar um arrefecimento dos entusiasmos. À medida que forem notando a rigidez das coisas na sua forma actual. E sempre que lhes entrar pelos olhos a composição dos interesses que alimenta o conservadorismo triunfante. Vão ter tempo para perceber que as coisas são como são, invariavelmente diferentes da forma que corresponde aos desejos interiores. Serão das dores maiores que os esperam: de cada vez que se esboroar por dentro um fragmento de um dos idealismos em que vivem imersos, é a acalmia das coisas que os faz aceitar o mundo na forma tão diferente dos idealismos que fervilhavam na intensidade dos dias vividos em acelerado compasso.

Os idealismos esbarram na resignação que vinga. Pode ser um braço de ferro e estarem convencidos que o voluntarismo de quem esbanja as forças pródigas de quando se é novo há-de falar mais alto, derrotando a insidiosa pulsão de aceitar as coisas como são. Assim que o tempo vier na sua sedimentação, e que a acalmia das tempestades que dão fervença à vida irromper como a bonançosa atmosfera que toma o lugar da intempérie, dos idealismos sobram os despojos espalhados pelo chão, os idealismos todos desfeitos em cacos. À medida que a idade for crescendo, esvaem-se as forças para recolher os despojos só para recompor os ideais. Não há voluntarismo que resista: os despojos serão definitivo restolho que encerram a tumba dos idealismos na sua arqueológica forma.

Comentava com alguém ao meu lado como é admirável dar conta que os mais novos continuam empenhados em idealismos voluntaristas. Dizia que hão-de envelhecer e os idealismos acabam por arrefecer, até por serem negados. Ou por conveniência, ou por resignação, negados. Quando vinha na viagem de regresso, pensava nisto tudo. E interrogava-me se a teimosia de certos idealismos, que em mim continuam a dobrar os acenos à resignação, prova a recusa em envelhecer. Ou se insisto em idealismos porque tenho medo de envelhecer.

18.11.09

Aplausos para o comandante!



Esteja sol ou faça chuva. Esteja o avião a planar na calmaria do vento ausente enquanto se faz à aterragem, ou contorcer-se entre os ventos cruzados que sobressaltam os passageiros que já fazem preces por terra firme. Quando o avião toca no solo, palmas, muitas palmas para o comandante que trouxe o aparelho a terra firme.

As palmas começam tímidas. Um passageiro toma a iniciativa, com um envergonhado encosto de uma mão na outra que se faz ouvir, quase imperceptível, no avião. Talvez seja o passageiro que mais medo passou durante o voo. Sentir as rodas do avião no enfim beijo ao asfalto da pista de aterragem é um alívio para este passageiro. O efeito de contágio alimenta o aplauso que percorre a claustrofóbica cabine onde viajaram, a trinta mil pés de altitude, aqueles passageiros. As palmas já não soam tímidas. Há mais gente a aplaudir do que passageiros inertes. Julgo que até os pilotos, encarcerados no cockpit hermético aos passageiros – a sua torre de marfim – conseguem escutar o ruído do aplauso colectivo.

(Eram outros tempos, quando uma palavra à simpática hospedeira permitia uma rápida visita ao cockpit, para apreciar a parafernália de instrumentos e de luzes multicolores e os pilotos no seu métier).

O que significa o aplauso colectivo? Simples descompressão das horas em que todos os temores invadiam desassossegados passageiros? Agradecimento aos pilotos que trouxeram o avião até a aeroporto seguro (não acreditassem, no seu íntimo, que isso fosse possível)? Ou apenas porque o passageiro do lado está entusiasmado a bater palmas, como se tivesse acabado de assistir a um teatro que o excitou, e mal fica se as mãos continuarem sossegadas na sua inércia? Nunca me apeteceu bater palmas aos pilotos dos aviões em que viajei. Não julgo que seja ingratidão. Ponho-me a pensar noutros meios de transporte: antes de sair de um autocarro, de um comboio, de um táxi, ou do metro, volto-me na direcção do condutor e desfaço-me em agradecidas palmas? Se nos fiarmos nas estatísticas e na lei das probabilidades que asseguram o avião como o meio de transporte mais seguro (há mais acidentes e mais vítimas noutros meios de transporte), os aplausos deviam ser encomendados aos condutores de autocarros, comboios, táxis e metros.

Às tantas, estou para aqui a dar – e de graça – ideias para os sacerdotes da igualdade. Pois esta é uma intolerável desigualdade de tratamento que desvaloriza o trabalho mais arriscado de quem nos conduz noutros meios de transporte que não o avião. Está tudo ao contrário – o que talvez diga muito da percepção que as pessoas têm das coisas, ao baterem palmas a quem menos merece. A estética, nas artes, está inundada de exemplos semelhantes.

Das observações enquanto passageiro de aviões consegui extrair a seguinte lei: há mais palmas nos voos de companhias low cost. É lá que os voos são baratos, é nestes aviões que se democratizou (ou se vulgarizou, depende da perspectiva) viajar de avião. Adivinho: muitos aplausos partem de gente que está no baptismo de voo. Por certo estão convencidos que é da praxe agradecer com sonoras palmas quando o comandante consegue a façanha de aterrar o avião. Devem andar distraídos deste mundo: pelos aviões que ocupam os céus todos os dias, e pela escassez de acidentes de aviação, deviam saber que a aterragem não é uma transcendência. Em voos transatlânticos, os passageiros são mais discretos – ou por estarem habituados a viajar de avião, ou por chegarem extenuados depois de longas horas de voo confinados à exiguidade do lugar que lhes calhou. Às vezes as palmas demoram-se num longo exercício tribal: é quando estão de regresso à pátria hordas de turistas que fazem gala em mostrar os adereços que compraram nos destinos exóticos onde estiveram de férias. Ainda arrebatados pelo exotismo do lugar e pela folia em férias, com aqueles sorrisos que transbordam para além do rosto, organizam o demorado aplauso tribal quando o comandante faz tocar as rodas do avião na pista de aterragem.

Estas palmas só servem para atear a sensação de casta que os pilotos de avião têm de si (ou da impressão de casta que fazem passar quando se passeiam, tão altivos, pelos corredores dos aeroportos). E para dar fogueira a uma intolerável desigualdade. Agora que os abaixo-assinados estão na moda, devia alguém tomar a iniciativa de um que fosse a favor do obrigatório aplauso a condutores de autocarros, comboios, táxis e metros.

17.11.09

Injustiçado Vara



Corre à boca pequena que esta terra está inundada de corrupção – da pequena, da média, da grande corrupção. Dos favores que se pagam com favores adiante, tantos que talvez fosse preciso um gigantesco computador para anotar o dever e haver do tráfico de favores. Foi logo calhar em azar a Vara um escândalo de corrupção. Diria, uma corruptela de corrupção. Pois Vara pediu dez mil euros para alimentar uns canais influentes que inclinassem decisões a favor do sucateiro corruptor. Dez mil euros, uma bagatela. Ainda se fossem cem mil euros, ou um milhão de euros, ou uma quota na sociedade com o sucateiro…Está visto: é uma cabala para atingir o primeiro-ministro.

Muito a sério: tenho pena de Vara. A sua brilhante carreira interrompida por um pequeno nada. Haveria de calhar em sorte uma conjugação de factores que são um euromilhões ao contrário. Um parceiro de comandita tão arrivista como o arrivista que veio da província e, de repente, acordou administrador de um grande banco. Uma brigada de investigadores policiais com inveja da fulgurante e, dir-se-ia, inteiramente merecida ascensão do transmontano. Em vez de se meterem com o peixe graúdo, esse que veste fatiota garbosa e mexe com dinheiro, muito e sujo dinheiro, foram à pesca de Vara. Está-se mesmo a ver: só para atingir o impoluto primeiro-ministro.

As solidariedades são para as ocasiões. Acho encantador que a secção lusitana da internacional socialista esteja mobilizada contra a pérfida justiça. Acho muito bem que se levantem suspeitas contra esta justiça que – todos sabemos – é tão inepta. Se temos juízes tão incompetentes, como podem trazer para a lama da suspeição pessoas valorosas como Vara. Para não variar, o Dr. Soares, patriarca do regime e penhor máximo da democracia, está coberto de razão quando avisa a justiça: senhores juízes, senhores polícias, tenham cuidadinho. Vejam lá com quem se estão a meter! Se eu fosse juiz ou estivesse na investigação policial destas negociatas perfeitamente legítimas (a lei é que está errada…), tremia de medo ao escutar o patriarca do regime advertindo a justiça para não escorregar para a sua privativa "face oculta". Parafraseando alguém que hoje se passou para os negócios, "quem se mete com o PS apanha".

Esta terra devia dar-se a conhecer ao mundo com uma nova lança em África: desta vez, reconfigurando o Estado de direito, mudando o sentido da igualdade de todos perante a lei. A lei não se aplicava aos intocáveis, estatuto a definir pelas secções nacionais da internacional socialista. Só para confirmar as profecias de Orwell e acalmar a fúria dos senadores e demais fauna socialista, que andam tão cheios de azia que ainda lhes dá uma coisa má.

Custa mais a desdita de Vara porque se nota – cheira à distância – que isto foi cozinhado para apanhar o querido líder em contramão. Essa agora, cercear-se a vida pessoal do querido líder; um dia destes, os governantes deixam de ter acesso à vida pessoal – era o que mais faltava! Tenho a impressão que o azar de Vara vem a dobrar por ser amigo de quem é. Que imprudentes foram aqueles telefonemas. Deviam, ao menos, falar em linguagem cifrada, para baralhar os neurónios dos investigadores. E depois há a insuportável inveja que goteja por todos os lados nas apreciações desagradáveis deste duo de visionários. Os fascistas sociais em asqueroso vómito porque outros, vindos da província e sem a linhagem social nem pedigree académico, tomaram conta do poder. São esses que conspiram na justiça. Todos (conspiradores e os vendilhões dos juízes) frequentam os salões onde se esboçam as intrigas contra os que só aspiram dar voz à democracia pura – aquela com todas as janelas abertas à igualdade de oportunidades. E não percebem, esses mesquinhos, que é a falta de linhagens que alimenta a mudança que poderia tirar esta terra da miséria. Se ao menos soubessem que Vara e o amigo primeiro-ministro são a encarnação do D. Sebastião por que se desfazem em preces…

O governador do Banco de Portugal (outro visionário que, diz-se por aí, dentro de meses será vice-presidente do Banco Central Europeu – mais outra sinecura europeia a calhar a um patrício, puxando lustro à já luzidia portugalidade) é que a sabe toda. Quando Vara interrompeu a actividade de "banqueiro", o visionário Constâncio lavrou a sentença definitiva: o camarada de partido era um exemplo a ser seguido.

16.11.09

O paradoxo do jovem “ideólogo” do governo



Já não é segredo para ninguém: quando procuramos defender uma causa de que somos militantes seguidores, o discernimento coalha. Acontece com todos. Conseguimos ser imparciais quando desempenhamos o papel de árbitro numa querela em que um dos envolvidos nos é chegado? Manda o bom senso que se tenha o pudor de, no fundo, não julgar em causa própria – pois a defesa de honra é de alguém que nos é chegado.

Pedro Adão e Silva é, ao que consta, a rising star do momento no PS. Uma espécie de ideólogo. Fica discretamente nos bastidores a dar a táctica. Em seu abono, a reputação académica. Mas é um pau de dois bicos: quando um académico se serve da suposta credibilidade intelectual para emprestar autoridade às posições que assume em defesa do partido em que gravita. Eu julgava que isto era exclusivo do partido da extrema-esquerda chique, onde gente com grande autoridade universitária ocupa lugares de destaque. O PS sentiu a necessidade de copiar a ideia. Com uma nuance, porém: depois do tremendo erro de casting do cabeça de lista para as eleições europeias, a gente com reputação académica fica na sombra. Estes intelectuais são sempre necessários. Caucionam a autoridade intelectual da táctica seguida. E são a compensação da gente que (só) tem perfil político.

Acho enternecedor que Adão e Silva, naquele seu jeito muito suave de contar verdades lapidares, de mansinho exculpe o chefe de mais um escândalo em que se vê metido. Concordo em muito com a frase que serve de mote para este texto: lamentável que a investigação policial abuse de escutas telefónicas, muito lamentável que haja fugas de informação dos tribunais para a imprensa. Todavia, não lhe fica bem o papel de virgem ofendida porque o adorado chefe anda aflito com a insidiosa cabala. Eu gostava que Adão e Silva se tivesse insurgido contra o exagero de escutas telefónicas e contra a intimidade entre tribunais e a imprensa noutras circunstâncias. Fazê-lo agora e neste assunto soa-me a desculpa de mau pagador, a um oportunismo que não condiz com a aura intelectual do jovem ideólogo do PS.

Depois vem a pérola maior: a ideia de "espionagem política". Foi no dia anterior que o zarolho ministro da economia disse, em entrevista radiofónica, que o primeiro-ministro estava a ser vítima de espionagem política. Como a prédica de Adão e Silva foi publicada no sábado, deve ter sido escrita (pelo menos) na sexta-feira. Justamente no dia em que o ministro inventou a fantasiosa "espionagem política". Quando li que o ministro tinha dito isto, admiti que ele tivesse passado da conta no vinho ao almoço, ou que apenas estivesse a exibir a sua indigência mental. Agora desconfio que a ideia lhe terá sido sussurrada pelo jovem ideólogo, que tinha acabado de descobrir o conceito (e de acreditar nele, o que é ainda pior) ao acabar de redigir o texto que seria publicado no dia seguinte. E a procissão continua, impávida e serena, enquanto os cães ladram estas aleivosias. Daqui uma sugestão: decretar por lei a intocabilidade do PS (ou acabar de vez com a independência dos tribunais).

O desespero retira discernimento. É tanta a urgência em limpar a imagem do chefe – o que dizer quando o ministério público encontrou "indícios da prática de um crime de atentado ao Estado de Direito"? – que se alinhavam argumentos em negação do próprio catecismo ideológico. Julgando que joga no tabuleiro da coacção psicológica como um mestre de xadrez, Adão e Silva adverte que "deitámos fora princípios sacrossantos para uma vida em comum numa sociedade decente: o direito à privacidade e a importância das garantias consagradas no processo penal, designadamente a presunção de inocência". E agita com o fantasma do "recuo civilizacional". É pena que a mesma pessoa aceite a intrusão na privacidade e a inversão do ónus de prova quando o Estado se transforma num agente de terrorismo fiscal. Como aí o querido líder não é beliscado, já não se trata de um recuo civilizacional.

O surf tem destas coisas: a muita água do mar que entra pelos ouvidos, terá o condão de alterar o discernimento?

13.11.09

O bigode auricular do presidente do supremo tribunal de justiça


Há cromos. Tenho que me explicar: personalidades públicas que ficavam mesmo a jeito do traço de caricaturistas afamados. Há nestes cromos uma conjugação de traços físicos que fazem as delícias dos caricaturistas. Saliências e protuberâncias, sinais distintivos, umas sobrancelhas avantajadas, orelhas de abano, um penteado inestético, um queixo descaído ou umas faces rosadas, os olhos compungidos a clamarem por piedade sem se saber por que razão se há-de ter piedade pela figura. Ou Noronha do Nascimento. (Que ontem voltou a ser eleito para presidente do supremo tribunal de justiça.)

Espero que a impertinência não me traga problemas. É que o presidente do supremo tribunal de justiça (de agora em diante abreviado para "supremo") é a quarta figura da hierarquia do Estado (à frente do presidente do tribunal constitucional!). Impõe-se respeitinho, pois. E a avaliar pela prosápia e pelo papo inchado do presidente do supremo, percebe-se que interiorizou a seriedade da função e a solenidade da sinecura.

Na paisagem de figuras que gravitam na atmosfera pública, há duas que me enchem as medidas se tivesse queda para esboçar os traços de caricaturas: o presidente do supremo e o futuro líder dos socialistas, o sempre jovem "Tozé" Seguro. Por hoje, deste não vou fazer menção – a não ser deixar uma pista, para memória futura, do que seria a sua caricatura: aquele ar de eterno bebé chorão, como se fosse a maior vítima injustiçada de um mundo cruel, metido dentro de um babygrow e com chupeta na boca.

O presidente do supremo é a caricatura em pessoa. O melhor dos caricaturistas seria aquele que, depois de muito reflectir sobre o traço necessário para desenhar Noronha, acabasse por oferecer à audiência a fotografia do senhor presidente do supremo como a sua caricatura acabada. Todavia, o presidente do supremo já andava à frente do tempo há muitos anos. Ainda era o sindicalista dos juízes e já me recordo daquela barbicha que seria popularizada, anos mais tarde, por esses ícones da estética que são os futebolistas. A barbicha farfalhuda destaca-se por emprestar uma proporção desfasada à queixada do presidente do supremo. (Ou pode dar-se o caso da barbicha disfarçar uma protuberância que seria desnudada caso as pilosidades não a cobrissem.) E se a caricatura, por milagre da tecnologia, pudesse vir adicionada de som que reproduzisse a voz ou escorregadelas semânticas e intelectuais dos caricaturados, Noronha levava, de vez, a palma da figura pública mais propensa à caricatura.

Ontem, porém, uma fotografia em grande plano do presidente do supremo encheu-me as medidas. Sua excelência foi entrevistado no jornal i. A fotografia em grande plano apanhava-o de perfil. Parecia que o fotógrafo, porventura uma pessoa com um notável sentido de observação, tinha reparado no que a fotografia quis destacar: uma floresta de pilosidades semeadas no pavilhão auricular do presidente do supremo. Logo me ocorreu uma ideia deliciosa para a caricatura do presidente do supremo. É que, quase septuagenário, a calvície tomou conta do couro cabeludo. Com o tempo, a matéria capilar do presidente do supremo foi escorregando para as orelhas. Cá está a ideia para a caricatura: um desenho que pusesse em destaque os abundantes tufos não filiformes que obstruem a cavidade auricular. Na caricatura haveria mais cabelo nas orelhas do que na cabeça.

De repente lembrei-me de ter lido uma recensão sobre um best-seller da literatura doméstica – a biografia da ex-consorte do presidente da agremiação futebolística regional que, diziam escutas telefónicas entretanto anuladas, era generoso com a vida sexual dos árbitros que apitavam os jogos da sua equipa. Nessa biografia, entre carradas de lamentáveis lavagens de roupa suja (como se tivéssemos interesse em ficar por dentro da intimidade do mediático casal que um dia foi de visita ao Papa – ao verdadeiro Papa), a ex-consorte confessava que o então marido adorava que ela lhe retirasse, com a ajuda de uma pinça, os excessos capilares que desfeavam as orelhas.

Das três, uma: ou o presidente do supremo, absorvido pelas decerto trabalhosas tarefas e pela importância institucional do cargo, não teve oportunidade de se enriquecer culturalmente com a pérola de literatura que acabo de mencionar, ou a cônjuge do senhor presidente do supremo não está virada para a paciente eliminação das abundâncias capilares no pavilhão auricular do marido, ou este não tem espelhos em casa.

12.11.09

The Dead Weather, "Treat Me Like Your Mother"

Para o texto ali em baixo.

À prova de bala



Vergado o braço, ficam os despojos que arqueiam o corpo na sorumbática humilhação? Talvez não, se o cenário se não montar assim. O segredo está na capacidade para desviar o olhar. Na insensibilidade que destoa provocações. Em saber contornar as armadilhas. Sejam as óbvias, ou as que aparecem dissimuladas na névoa propositada.

Uns dizem que a dignidade não se magoa. Pensam atavicamente, como se ainda fossem dias de cavalheiresca defesa da honra em duelos onde só falta o apimentado código de honra que obrigava os rivais a recuarem dez sincronizados passos para se voltarem e soar a destreza (ou apenas a sorte?) daquele que premisse o gatilho mais depressa e com pontaria. Eram tempos que há muito deixaram de pertencer ao nosso mundo. E, todavia, teimamos em dar o peito às balas, imaginando que somos um qualquer super-herói com poderes sobre-humanos.

As balas esventram a carne. As balas que não são feitas de metal nem disparadas por revólveres não sangram a carne, mas fazem o dano maior: tomam conta dos segredos interiores, exaurindo as resistências amealhadas que são o tónico para aguentar as de outra maneira insuportáveis dores do mundo. O segredo mais bem reservado é o de saber como podemos ser à prova de bala. Exige-se a paciência que o quotidiano altera com frequência. A provação será então a dobrar: aturar os atentados à paciência, para depois estaquear as reservas que levantam o intransponível paredão contra os traiçoeiros ângulos que aparecem onde dantes apenas existia terreno plano e sem estorvos.

O receituário – o melindroso receituário: tornar a frágil carne num couraçado contra os desgraçados que se persignam por incomodar. Há quem faça disso causa de vida. É o seu particular elixir. São os diabretes instalados na existência alheia, porventura a flagrante confissão dos mal resolvidos problemas de que não se conseguem libertar. Angustiados pela vidinha mesquinha e desinteressante, vingam-se das pessoais frustrações em quem se não reveja nessa infausta forma de ser.

A espessura do tempo sedimentado traz a lucidez. Fica então transparente a distinção entre o acessório e o essencial. Os ataques de videirinhos desditosos nem merecem ser arrumados na gaveta do acessório. São menos do que acessório. O que é essencial? Arrebanhar a lucidez que atrasa o relógio que marca a cadência da desinteressante vidinha dos que infernizam existências alheias. O grande desafio dos dias correntes é saber ser à prova de bala. Ou a forma contemporânea de sermos super-heróis, que é o ensimesmamento.

Cair na cilada dos mentores da infernização é fazer o jogo que se renega. Repetem os que não admitem a pessoal dignidade espezinhada: deixamos de honrar os sedimentos do que somos se simularmos a inércia perante a maledicência. Eu proponho o contrário: que a maledicência fique entregue a quem a pratica. Será um diálogo impossível. De um lado, um furão possuído por excrescências mentais. Do outro, alguém que nem sequer dá conta daquela existência. E não é por sobranceria. É por um dever de higiene mental. É que os belicismos argumentativos também provocam feridas, cicatrizes profundas por onde se esvaiu muito do sangue que é nutriente da existência.

Talvez os anos dobrados sejam a caução maior da aprendizagem. Taluda de sóbria perenidade onde os campos são verdejantes, pincelados por um céu deslumbrante mesmo quando está tingido por nuvens que se acastelam anunciando a agreste precipitação que todavia esverdeia os campos. O resto, irrelevâncias que os homens do lixo tratam de varrer. No restolho encontram as balas perdidas, as balas incapazes de perfurar a blindagem em que a existência se converteu.

Toda a cura contém a sua maleita, porém. Desconfio que um corpo à prova de bala se transforma numa estátua insensível. A difícil levitação dos afectos.

11.11.09

Somos elitistas, mas somos coerentes?



Gostos musicais. Fazemos gala em glosar o pregão: música só para uma imensa minoria. Vou-lhe chamar música alternativa. Há quem diga, com notório orgulho, que cultiva o género da música vanguardista. Os que reprovam quaisquer rótulos, por a música não merecer classificações sectárias e limitativas, porventura melómanos militantes, entoam o seu gosto pela boa música e ponto final. Não interessa que gostemos ou não de rótulos. Às vezes, por conveniência – para sabermos do que estamos a falar – convém usá-los.

Uma tribo. Como todas as tribos, comunicam-se por sinais. Neste caso, musicais. Como adjacências, há certos sinais exteriores que identificam os aduladores da música alternativa. Um dress code. Os livros que se lêem, os nomes de autores que são um must. Os locais nocturnos que se frequentam. Noutras artes, a inevitável propensão para escolher artistas que vivem à margem. Até uma certa militância – ou, pelo menos, simpatia – por movimentos políticos e cívicos que ostentam os sinais de diferença que atraem aqueles que estão cansados da modorra em que vivemos. Alguns membros da tribo são auto-encomiásticos: consideram-se localizados na vanguarda, como se pertencer a uma vanguarda lhes emprestasse a superioridade que autoriza a olhar as não vanguardas com desdém.

(É escusado fazer a advertência que se impõe quando o verbo escorrega para a generalização. Os estereótipos são a sua própria viscosidade. Fixam-se regras e esquecemos as excepções. Mas isso não vem ao caso para o assunto tratado neste texto.)

Talvez pela pretensa superioridade pelo menos estética que exibe, a tribo reclama para si o altar da coerência. Essa coerência evapora-se quando um artista que havia sido glorificado entretanto atingiu o estrelato e passa a ser reconhecido pelo grande público. O nicho onde nidificam os artistas alternativos é um viveiro de onde saem alguns nomes que depois chegam aos topes, ganhando a simpatia dos milhões. Perdem-se nos apetitosos caminhos da fama, dos enormes proveitos materiais. São vendidos, no entendimento dos guardiães do templo alternativo. Depressa caem em desgraça entre a tribo a que pertenceram. Mesmo os trabalhos mais antigos, quando andavam pelas frequências habitadas pelos meios alternativos, são renegados. É como se, subitamente, aquele artista perdesse os atributos que eram admirados antes de ser seduzido pelo magma da notoriedade.

Estas palavras são uma reflexão interior, auto-crítica em estado puro. Foram tantas as vezes que remeti ao esquecimento artistas que transitaram para a esfera onde reside o grande público. Preconceito puro, pois a proscrição do artista tinha efeitos retroactivos. Não tolerava a nova produção artística por ter caído no goto de milhões. Desconfio que o que me atemorizava era haver uma multidão a coincidir na minha estética musical. No fundo, tinha pavor de que os meus gostos se democratizassem. Estalinisticamente, expedia o artista para um canto obscuro da biblioteca musical. Sentia-me traído. Nem sequer parava dois segundos para pensar se a culpa (se é que se pode falar de culpa) pertencia ao artista. Que podia ele fazer se um seu trabalho, inicialmente cultivado pela tribo alternativa, conseguia cativar a simpatia do grande público? Às vezes, é certo, estes artistas ajudavam à repugnância da tribo alternativa: assumiam poses condizentes com o estrelato a que haviam sido conduzidos. Massificavam-se, destruindo qualquer vínculo de identificação com a forma alternativa, não massificada, de estar na vida da tribo de onde vinham.

Em tudo isto, inquieta-me sentir que a coerência fique para segundas núpcias. A menos que a única coerência que possa ser apontada à tribo alternativa seja a fidelidade a artistas que não ponham o pé fora do território alternativo. Nesse caso, perdemos objectividade: as obras musicais passam a ser apreciadas por quem as faz, jogando-se toda a subjectividade que impede um juízo imparcial, objectivo. Mas a obra não nasce desligada do seu autor. A objectividade é inseparável de alguma subjectividade (e não menciono aqui a subjectividade como a liberdade do ouvinte interpretar à sua maneira a produção musical que consome). Todavia, abro o peito para esta doída confissão: a estalinista proscrição de vendilhões artistas soa-me a um rombo na ditatorial coerência.

Talvez o mal seja outro: a tirania que a coerência em mim exerce.

10.11.09

Acidental cronista social


Sem querer, nem saber ao que ia, fui desaguar numa festa de aniversário de um jornal sensacionalista – o 24 Horas – com muito arrivista social e muita gente que depois aparecia enjoativamente em fotografias, tão ao género cultivado pelas revistas sociais, projectadas na parede do recinto.

A culpa foi da outra metade da sociedade conjugal. Ela sabe do que a casa gasta. Fosse ela revelar ao que íamos e sabia que na minha companhia não ia parar àquela festa. Soube-me pescar como deve ser. Disse que era um "evento" (nunca usou a palavra "festa") em que uma empresa de catering nossa conhecida se ia estrear no negócio do sushi. O pretexto ideal para me empurrar para um local e uma circunstância onde, sabia-o bem, jamais poria os pés se soubesse ao que ia.

Uma vez lá entrado, não podia colocar trombas em sinal de desagrado. O sushi prometia e o anfitrião (não o jornal; o senhor Mendes, da empresa de catering) foi tão amável que não merecia a desconsideração. Interiorizei o desconforto e tentei não contagiar o fácies com a sensação do peixe fora de água (que era assim que me sentia – e juro que a sensação não era influenciada pelo peixe cru que estava prestes a comer). O truque não era fazer de conta que o peixe respira fora do aquário. O truque consistia em apreciar a fauna que ora se extasiava, ora lançava olhares furtivos em redor para ver quem estava e se assegurava que era vista.

Tive que me entreter com o ambiente em redor. Era heterogéneo. Por lá pululavam os connaisseurs do métier, ou seja, aquelas caras repetitivas que não paravam de aparecer nos diapositivos projectados numa das paredes do recinto, como se fosse um exercício de onanismo narcísico dos ditos. Andava gente engravatada, de outra faixa etária (mais avançada), que parecia medir os passos com a timidez de quem não se encontrava à vontade no meio. Pareciam-me altos funcionários bancários – que os jornais, como tudo o que se mexa, dependem da generosidade creditícia dos bancos. Traziam a tiracolo a prole adolescente. Elas com vestidos de gala, eles engalanados com pulôveres de cores garridas. Uma vampe, no interstício dos quarenta e dos cinquenta, a esvoaçar o frasco inteiro de perfume que havia derramado nas vésperas do acontecimento. Ela cirandava, altiva, ostentando os implantes mamários que sacou ao endinheirado consorte, reivindicando os olhares masculinos para conforto das suas fantasias indizíveis. E havia muitos representantes da sexualidade alternativa (bem entendido: alternativa em relação à minha) que emprestavam um colorido especial à festa.

O sushi estava divinal e o senhor Mendes de parabéns. A música condizia com a fauna dominante – kitsch quanto basta. Como a noite coincidia com a noite das bruxas (ou o halloween, ou lá o que isso é – outra americanice que importámos nesta aculturação sublime), havia duas raparigas fantasiadas de bruxas metidas dentro de uma banheira à entrada do recinto (simulando um tórrido banho lésbico?). Definitivamente, a noite estava esquisita: bruxas lésbicas na baixa da cidade e eu numa vernissage para uma certa "casta" social portuense. Diria a minha mãe, uns dias depois: "até peixe cru comeste, meu filho".

Para caldear a noite, quando os neurónios se cansaram do desfile de vaidades e vaidadezinhas, metemos o corpo à morrinha que caía e demos uma saltada a um bar alternativo (digo, com música alternativa) nas redondezas: o Rendezvous, passe a publicidade. E se a noite estava estranha. Confirmei-o no dia seguinte, ao saber que naquela noite tinha morrido o ícone radiofónico (António Sérgio) que me dera a conhecer a música que tinha ouvido no Rendezvous (Cocteau Twins).

Estranha, essa noite. Continuo a acreditar que bruxas não as há (se fossem todas como as que ensaiavam o banho lésbico, teria outra opinião, contudo). Do seguinte estou certo: não quero voltar a fazer crónica social – esse género deplorável.

9.11.09

O que aprendemos com a queda do muro de Berlim? (Um ensaio sobre liberdade)



Vinte anos sem muro de Berlim, esse infamante marco da história. Para um amante da liberdade – das liberdades – a evocação da queda do muro de Berlim é um tonificante mergulho no baú das recordações. As imagens de rebeldia das pessoas a escaqueirarem o muro, o efeito de contágio em que mais e mais pessoas se acercavam do muro sem o temor de serem abatidas pelas miseráveis, covardes metralhadoras dos guardas comunistas, o ambiente festivo que demolhou a revolta armazenada durante décadas de imbecil opressão – ah, como merecem ser emolduradas essas imagens. Como mostruário da essência de liberdade que percorreu as veias das pessoas que gritaram contra a artificial divisão de uma cidade, de um país. Contra o artificial espartilho determinado pela oposição das ideologias que, quando se impõem sobre as pessoas, são uma artificialidade que abjura a natureza humana.

Há lugar a festejos, hoje que passam vinte anos da aurora de liberdades que começou a despontar para tantas pessoas que viviam encerradas no obscurantismo? Não direi que não. Ao menos, a evocação da efeméride serve para recordar o bem inestimável que foi conquistado. Não digo que as celebrações tenham que permanecer solenes, pomposas; as duas décadas que passaram foram suficientes para sedimentar as liberdades, alguma liberdade, onde elas estavam ausentes. Insistir na solenidade das comemorações banaliza o valor da liberdade. Talvez então se perceba por que motivo as autoridades insistem na pública glorificação da data.

O mal das bebedeiras de felicidade é que transportam consigo a ressaca do dia seguinte. O inestimável bem do colapso do muro de Berlim foi a oportunidade para milhões de pessoas retomarem o contacto com a liberdade (no caso dos mais novos, de aprenderem a saborear a liberdade). No dia seguinte à festança, sobra aquela sensação de vazio, como se o êxtase de sensações no zénite da algazarra as tivesse diluído no que sobrou do corpo. Assim vejo os despojos do muro de Berlim. Uma enorme conquista para a liberdade, para o usufruto das liberdades.

(E aqui desconto algum revisionismo histórico dos que começaram o processo de orfandade no dia em que o muro veio abaixo. Compreendo-os, nas circenses cambalhotas argumentativas que dão para explicarem que o mundo ficou mais terrível depois do muro ter sido derrubado. São os argumentistas que acusam hediondas teorias da conspiração de, elas sim, terem contado uma história que é revisionista. Não havia prisões por delito de opinião, nem purgas, a espionagem à gente comum era diferente da praticada pelos sinistros funcionários da PIDE (espionagem que contribuía para todos serem exemplares – uma espionagem pedagógica), havia imenso pluralismo político. Quando nos contam o contrário, é uma insidiosa manobra de agentes a soldo do capitalismo que querem liquidar de vez o comunismo. Daqui dou-vos uma ajuda, ó revisionistas de serviço: denunciem tudo isso e acusem tais agentes de genocídio ideológico.)

O que eu acho é que a festa ficou a meio. Toda aquela gente, satisfeita com a deposição dos tiranetes, alambazou-se com o terreno conquistado para a liberdade. Se for acertado que é da natureza humana sermos exigentes em relação ao que surge por diante, ainda há alguns muros de Berlim, muitos deles escondidos à socapa debaixo dos nossos narizes, que merecem o camartelo. Há ainda muito a fazer pela liberdade, pelas liberdades. Porque as democracias continuam a ser um sistema de tutela das liberdades e da liberdade. O diagnóstico piora quando somos testemunhas de "democracias musculadas" sob pretexto da defesa das liberdades. Uma absoluta contradição de termos: cerceiam-se as liberdades para garantir a segurança contra as ameaças dos que atentam contra a nossa liberdade.

É nisto que ainda falta terminar a obra começada há vinte anos (e uma obra também se faz destruindo o que foi erguido). Não troco a liberdade pela segurança. Que, ainda por cima, não é garantida – não passa de uma conjectura. A obra termina-se dentro da cabeça de cada um de nós.

6.11.09

Mar de fundo



O vento furioso que vem do oceano coalha as águas que chegam ao areal. Sobra o restolho do majestoso mar que se afaga ao vento tresloucado. O mar que galga as distâncias até se esmagar nas rochas alisadas pela erosão ou nas areias penteadas pela espuma sobrante.

Subo ao promontório. Termina numa falésia que se inclina sobre as ondas que se revolvem. O estampido das ondas quando se quebram nas rochas indefesas é rouco, magistral, aterrador. De uma nitidez assustadora, como se as ondas alterosas fossem vizinhas, quando afinal se alojam longe, onde o precipício mergulha nas águas. Que seja pelo temor das alturas: os olhos fixam-se onde o fio do horizonte se funde com o mar tempestuoso. Os olhos retêm a turbulência das ondas que cavalgam umas nas outras, desordenadas, espalhando uma densa rede de espuma que, dir-se-ia, é a fúria de um oceano açoitado pelo saracoteio do vento. Ou, poder-se-ia ainda dizer, a espuma que sinaliza o cansaço das águas, tantas vezes entaladas entre solavancos. O cansaço que tem fim prometido quando enfim as águas se estatelam nas areias molhadas.

Ora pincelado pela bruma de um aguaceiro temporário, ora aliviado por um sopro do vento que podou as nuvens, o horizonte é um quadro inteiro de serrania marítima. Digo serrania porque o leito onde cavalga o oceano é uma interminável sucessão de declives, a água em constantes cabriolas, trepando aos cumes das ondas que logo se dobram em declives íngremes que fazem as águas arremeter até onde se esconde, nas suas profundezas, o solo onde repousam. É nesta estouvada coreografia que desalinha a maresia, que julgo encontrar os nutrientes para a míngua dos estados de alma. Os olhos nem dão conta de como o tempo se demora enquanto contemplam a dança desordenada, como as ondas tropeçam umas nas outras. Como se algumas estivessem em agonia, trepando às costas das que vão à frente.

Este mar de fundo já não vinga; depõe-se diante dos meus pés, no altar do promontório. Os caprichos da geografia desenharam a língua de terra e a parede de rochas como seu túmulo. Ali chega, com a imponência das ondas que ninguém ousaria desafiar, para se debater com a incapacidade de perfurar as rochas que se entregam como peito acolhedor. O mar de fundo, travado pela inércia das rochas gastas pela erosão do tempo, esgota-se num fio ténue que se consome nas gotículas aspergidas desde as profundezas. Lá no fundo, onde o abismo marca encontro com os mares que o beijam.

O mar de fundo, este mar que vomita ondas medonhas, é um esgar das minhas intenções edificantes. Quando os dias outonais por fim coincidem com o Outono em pessoa, e o vento furioso soprado das funduras do Atlântico entrega o mar enervado, é como se tudo mudasse. Como se nesse mar enervado encontrasse, paradoxalmente, o receituário para apascentar as dores interiores que se consomem no mar chão quando o ausente vento o consente. É no mar profundo que bebo os elixires que extasiam. Os elixires que caucionam as telas admiráveis que, enfim, desfilam diante dos olhos.

O mar de fundo, em cambalhotas inesgotáveis, é providencial. É em nós, bem nos fundilhos do ser, que habitam as soluções. O mar de fundo que há em nós só precisa de ser acirrado; precisamos de deitar o rosto ao vento enfurecido que a vilania dos sentimentos queria incendiar. O mal é quando nos iludimos pelos cânones do conforto, tão propensos ao resguardo do vento que sentimos tão agreste.

Oxalá conseguíssemos perceber que a notória essência das coisas está na antinomia do que delas consideramos. Fora das convenções. O mau tempo não seria mau. O mar tempestuoso seria um hino às espontâneas palavras e aos sentidos em estado puro. E o vento que se diz agreste, apenas o bálsamo para descobrirmos em nós o mar de fundo que teimamos em estrangular.

5.11.09

Meter gasolina e ganhar bilhetes de comboio: então, metemos gasolina para quê?



Às vezes, tão inebriados pela espuma dos dias, não prestamos atenção ao que interessa. Não decapamos a espuma para ficar à mostra a essência de tudo. Quando nos livramos da espuma, sobra uma ininteligibilidade capaz de deixar o queixo caído. Ou isso, ou diante do ininteligível ao comum dos mortais há-de contrapor um qualquer iluminado, atestando que nos atrapalhamos por causa dos escassos dotes intelectuais que previnem o discernimento.

É o que sinto quando testemunho certas campanhas publicitárias. O mal pode ser meu. Repito: talvez ande para aqui a sobrestimar as minhas capacidades, quando afinal elas não suficientes para perceber certas mensagens que essa casta tão inventiva (os publicitários) lega à humanidade. A mais recente pérola foi uma campanha publicitária da GALP. Convidam os clientes a abastecerem os automóveis com combustível. Até aqui, tudo bate certo: vender combustíveis é o negócio da empresa. A normalidade termina aqui. Logo a seguir a GALP oferece bilhetes de comboio a quem tiver comprado combustíveis da marca.

Ando a tentar perceber a manobra. Meto gasolina no automóvel e, em troca, recebo bilhetes para viajar gratuitamente no comboio. Que me perdoem a estultícia, mas não sei como hei-de reprimir esta interrogação: pretendem que meta gasolina no automóvel só para poder andar de graça no comboio? Vamos supor que todos temos muita sensibilidade ambiental, de tal forma que nos encantamos com meirinhos da ecologia e com publicidade concebida por empresas que estão no pódio dos produtos que agridem o meio ambiente e que, talvez para maquilhar a sua má imagem, descobrem formas fantásticas de mostrarem que são muito amigas do ambiente. Começamos a abastecer os automóveis nos postos da GALP. Mas deixamos os automóveis quietos nas garagens, pois passamos a viajar de comboio. E gostamos tanto de andar de comboio que continuamos a ir à bomba de gasolina só para obter o brinde dos gratuitos bilhetes de comboio. Ao fim de quanto tempo tenho o depósito do automóvel a transbordar?

Como o povaréu costuma dizer, os mafarricos nunca dão ponto sem nó. A GALP deseja que abarrotemos os depósitos dos automóveis de combustível, pois isso faz de nós utentes dos comboios de periferia e, no final, todos (a gasolineira e os clientes que forem na conversa) ficam com a consciência apaziguada: deram o seu modesto contributo para melhorar a qualidade do ar que respiramos. Só que, afinal, os bilhetes de comboio não são gratuitos: é preciso comprar combustíveis à GALP para que a CP nos deixe viajar à borla. É como proclamam certos economistas: "não há almoços grátis".

Gostava de saber – se fosse possível sabê-lo – que impacto está a ter esta campanha: há mais gente a andar de comboio? Os cobradores que picam os bilhetes deparam-se com mais gente na posse de vales que autorizam a viagem gratuita no comboio de periferia? Andam menos carros nas estradas de acesso à grande cidade? O negócio dos estacionamentos pagos a preço de ouro já está a agonizar? Já algum especialista mediu a qualidade da atmosfera e concluiu que o ar se tornou milagrosamente mais puro? E outra interrogação mordaz: há gente a armazenar na garagem a gasolina que já não cabe nos depósitos dos automóveis? E as vendas da GALP, aumentaram por causa desta campanha publicitária?

Posso estar a encarar o problema com as lentes erradas, mas se a intenção da GALP-que-de-repente-se-tornou-muito-amiga-do-ambiente é que deixemos os carros nas garagens e nos desloquemos de comboio entre as periferias e a grande cidade, por que nos obriga a comprar combustíveis? Que alguém faça as contas rigorosas (portanto, não valem contas feitas por economistas que costumam fazer orçamentações no sector público), pois os tempos não se prestam a desperdício de dinheiros. Só para saber se não estamos a gastar mais dinheiro se formos sensíveis à lengalenga da GALP do que se comprássemos o passe mensal da CP. Desconfio que sai mais barato pagar para andar de comboio.

E lá se esboroa a magnífica publicidade da GALP, a campanha que nos quer fazer crer que a GALP é o nosso particular Al Gore.

4.11.09

A seita socialista (remake)


Apetecia-me dizer que as histórias de corrupção são todas tristes. Mas é ao contrário: há nelas um fogacho, mesmo que seja intermitente e tímido, que acende a candeia da mudança. Às vezes, é preciso um abalo telúrico arrasador para que tudo se erga do nada; a podridão de tudo exige uma terapêutica devastação. Só assim os corpos doentios são devolvidos ao lugar a que pertencem. Espera-se que, a seguir, os que não consigam sucumbir à tentação do enriquecimento por ilícitos meios se lembrem do que aconteceu aos que foram passar uma temporada ao cárcere.

Estamos neste estado comatoso. À vez, escândalos que envolvem as duas pernas do bloco central. Para que nenhum dos rivais se ria do outro, pois todos têm os seus particulares rabos-de-palha, os seus podres que envergonham. Desta vez caíram na rede dois influentes socialistas. Um já foi ministro e é (pausa para ganhar coragem para escrever a palavra que se segue) "banqueiro". O outro já foi secretário de Estado. Perderam as sinecuras políticas. Mas o segundo foi promovido ao muito compensador cargo de gestor público. O outro manda num banco privado que, julgo que em presságio do que estaria para acontecer, ganhou o cor-de-rosa como cor oficial. A tentação da ganância fê-los reféns da falta de escrúpulos de um empresário arrivista.

Não precisam de mo dizer: até prova em contrário são inocentes. Só que não há fumo sem fogo. Os indícios serão consistentes, ou não tinham ganho a qualidade de arguidos numa marosca tentacular que toca gente bem colocada em muitas empresas públicas. Também sei que a sensatez manda que não se confundam as árvores com a floresta. Os que se sentirem ofendidos pelo título deste texto (exagerado, na sua maneira de ver), aconselham que não misture um par de árvores adoecidas com a – dirão – esplendorosa floresta. Devo advertir que aquele título me foi sugerido pela reacção histérica de um consagrado socialista, o poeta Alegre.

Foi ele que vomitou corporativismo de seita, o sintomático corporativismo, quando se atirou ferozmente às fugas de informação dos tribunais para a imprensa. Às suspeitas dos dois camaradas de partido estarem envolvidos numa lamentável, comezinha operação de tráfico de influências, o poeta Alegre disse nada. O melhor é atirar poeira para os olhos dos incautos, desviando do essencial para o acessório. Mas não somos todos ignaros, como o bardo do regime acreditará.

É este corporativismo que coloca os seus fautores como padrinhos de seita. Os da seita, mesmo que estejam metidos em negociatas ilegais, mesmo que tenham sido corrompidos, devem ser defendidos. A seita está acima de tudo – até das leis que condenam quem for apanhado com a boca na botija, como apontam os indícios recolhidos na investigação policial. Não é a primeira vez, nem será a última, que somos testemunhas desta enternecedora protecção entre iguais. Vou pelo cinismo: já que tanto se critica o individualismo que nos desumaniza (é o que consta), esta protecção de casta é uma lição notável do contrário do individualismo. Devíamos todos aprender com o bardo do regime. Às malvas as leis, quando podem estragar a vida a um dos nossos. Que se apliquem apenas aos que não pertencem à seita.

Eu pergunto: isto que vai saindo para a imprensa não será apenas a ponta do icebergue? Estes escândalos, que metem gente que veio da política e que não olha a meios para enriquecer, são apenas o que se sabe. Qual é a dimensão do que permanece às escuras, sem que as autoridades cheguem a travar conhecimento com negócios feitos debaixo da mesa?

Regresso ao laivo de optimismo com que comecei. Temo que estivesse a pressagiar no vazio, uma ingenuidade irreprimível (concedo). Sabemos que as tortuosas curvas da justiça trazem despistes, quando a justiça factual escorrega diante de "expedientes processuais" que anulam provas que chegam ao conhecimento de todos. Até nisto só conseguimos ser aprendizes da Itália, no pior que a Itália oferece como exemplo de tentaculares clientelismos. Por lá, a justiça vai funcionando. As escutas telefónicas não são varridas para debaixo do tapete e os envolvidos em escândalos não prosseguem altivos. As escutas? Não passam de uma colectiva miragem auditiva. Aos penedos e às varas que fazem carreira na senda da abastança material passando por cima das leis, tenho a impressão que nada acontecerá.

Adenda: Para confirmar o sentimento de seita, o moço de recados da dita no Banco de Portugal (a constância personagem que ainda está à frente desta instituição) aplaudiu Vara por ter renunciado ao cargo no Banco Millennium. Com a seguinte sentença lapidar: "o sector financeiro precisa de bons exemplos". Importa-se de repetir?