20.11.09

As angariadoras da fé

Batia a porta do carro, depois de o arrumar num lugar apertado. Mesmo ao lado, três pessoas em, diria, íntima conversa. Duas mulheres idosas pareciam segredar a um adolescente, daqueles que agora há com aspecto descuidado e ar rebelde. Quando pus os pés no passeio ouvi as mulheres a advertirem o jovem que ele tinha que encontrar deus, com aquela entoação de quem prega um ralhete na criança que acabou de asneirar. Eram angariadoras de almas tresmalhadas pelos obscuros caminhos da fé ausente. Enquanto uma delas, a mais atarracada, crescia para o longilíneo adolescente e emprenhava os ouvidos com a imperatividade de deus, a outra dedilhava um livrinho minúsculo, com letras que só se viam à lupa.

Segui o meu caminho. Antes de dobrar a esquina, espreitei para trás. O conciliábulo da fé perseguia os seus trâmites. As velhas teimavam em arregimentar aquela alma para o rebanho de deus. O jovem, coitado, aturava com paciência, talvez confundindo a paciência com educação, ou a educação com cortesia. Logo a seguir liguei o iPod. Instrui-o para escolher as músicas em modo aleatório. E que terrível coincidência: nos ouvidos, uma música (a que aparece ali em cima) que faz a anti-apologia de deus, ou das várias personificações divinas consoante os diferentes credos.

O meu ateísmo não tem problemas com deus, no sentido de que o ateísmo é a negação de deus. Mal de mim se aspirasse a provar aos crentes que estão enganados, que deus não existe. Não chega a ser um problema, como o é para alguns sistémicos anti-clericais. Já me incomoda a urgência de conquistar almas desviadas para os bons caminhos da bondade divina. Há gente que não se contenta com a expressão da sua individual fé; querem convencer os que se ausentaram da fé, ou os que nunca por lá andaram, de que deus é uma inevitabilidade e que as nossas vidas são incompletas se o não reconhecermos. Eu compreendo que lhes faça espécie como uma criatura (que para eles é criatura de deus) negue a entidade divina que lhe deu vida e imprime sentido à sua existência. Gostava que tivessem arejamento mental para aceitarem que há quem não se reveja no catecismo em que deus é o protagonista de todas as acções.

Tanto me incomodam os que ungem os outros com a necessária fé como os que se exaltam na demonstração pública da inexistência de deus. E tudo isso me incomoda porque estão enganados quando se envolvem numa actividade que é uma intrusão na esfera íntima de cada pessoa, como se fosse uma competição entre o bem o mal. O maior desconforto é quando reivindicam a verdade, piamente convencidos que a sua verdade é a verdade que os que militam no lado oposto têm que aceitar. Se ao menos percebessem que a imposição de uma verdade, assim enquistada no seu imobilismo, é uma impossibilidade material. É que a verdade de uns é vivamente negada por outros. E vice-versa.

Eu gostava que me saíssem na rifa duas velhinhas como aquelas que percorrem as ruas na angariação de tresmalhadas almas. Só para perguntar se por acaso gostariam que alguém propusesse a sua pessoal "desevangelização". Heresia, diriam de supetão. Talvez o blasfemo apanhasse com um sapato na cabeça, ou levasse com o minúsculo livrinho no canto do olho. A lobotomia intelectual não deixa ver para além dos muito apertados quadros mentais. As angariadoras da alma, na sua diária perseguição de almas ensombradas pela vacatura de deus, prosseguem a evangelização rua fora. Não sei se lá na igreja lhes prometeram redenção total por cada reconvertido, ou se têm garantido lugar celestial por cansarem as pernas na actividade de quem espalha a "palavra do senhor".

Admiro a coragem das angariadoras de crentes. As pernas cansadas pela idade parecem revigorar-se por irem à caça de gente que não deixou o bom deus entrar, ou de gente que a certa altura da vida o expulsou de dentro de si. Mas admiro-as pela errada razão: só por se prestarem a um lamentável papel, e de imaginar que devem ouvir muitas respostas agrestes quando o insistente convite para abraçar a fé é declinado por gente já incomodada com a teimosia intrusiva. Deviam perceber que a fé não se ensina nem se convence.

2 comentários:

Milu disse...

Pelo que me foi dado perceber ao ler este seu texto você parece descon hecer que estas pessoas recebem uma comissão. Quanto ou de onde vem o dinheiro com que lhe pagam o esforço é que também não sei, mas não é só a fé que move estes angariadores de rebanhos tresmalhados. Qual fé, qual quê...É o vil metal que nos comanda a todos.

PVM disse...

Nesse caso, são como delegadas de propaganda, que em vez de ser médica é da fé.