3.11.09

“Soberania alimentar”?



Passo por um cartaz enorme com propaganda do partido ecologista os verdes. O cartaz convida à produção e ao consumo de alimentos locais. Por uma alimentação de melhor qualidade. Só assim chegaremos à "soberania alimentar". Estas duas palavras (sem as aspas, que são da minha lavra) aparecem em tamanho gigantesco. Aquelas letras garrafais entram pelos olhos de quem passe naquela via, mesmo que vá à velocidade a que a estrada convida (não é por acaso que se chama "via rápida).

Alguém anda atrasado no tempo: ou os ecologistas que têm o costume de emparceirar com os comunistas; ou eu, quando ensino que antigamente é que fazia sentido falar em soberania alimentar. Era dantes, quando os países entravam em guerra por qualquer beliscão, que era fundamental o auto-abastecimento alimentar. Se um país fosse dependente de abastecimento de comida, podia ficar à míngua caso entrasse em guerra contra o país abastecedor. Explico isto aos alunos para que percebam o caos instalado nos países que mantêm magnânimas subvenções aos agricultores (é o caso da União Europeia). Para que percebam que nós, consumidores de alimentos, somos a generosa segurança social dos agricultores. Digo-lhes que o contexto – o tempo, o mundo – eram muito diferentes. Hoje, a palavra globalização não é vã. O mundo mudou: está mais seguro (tirando a insegurança dos movimentos terroristas, que não são ameaça aos abastecimentos de alimentos, contudo). Desconfio que os verdes de cá têm saudades da paz pelo medo que havia na guerra fria.

Posso estar errado quando ensino isto aos alunos. Tenho que considerar a hipótese de os verdes terem novos dados que tornam anacrónico o quadro que pinto aos alunos. Talvez agora fosse o momento para os ecologistas deste partido explicarem o ressurgimento da "soberania alimentar". De onde vêm as ameaças? Não conta invocar teorias da conspiração que contam fábulas acerca dos interesses maquiavélicos das empresas multinacionais que dominam a agricultura. Repito a pergunta: de onde vêm as ameaças? Quem nos pode colocar a morrer de fome para se voltar a mencionar o (digo eu) vetusto conceito de "soberania alimentar"? Porventura aquele outdoor gigantesco é a expressão de um desejo: a diferença entre o que o mundo é e o que os verdes gostariam que ele fosse.

Os interesses de "grande capital" provocam urticária aos compagnons de route dos comunistas – não é novidade. Eis que se faz luz na retoma da "soberania alimentar": comamos mais alimentos colhidos nas nossas terras, que assim não contribuímos para a engorda dos deploráveis capitalistas que fazem tanto lucro com a subsistência das gentes – ó delito ignominioso. Mas o que interessa saber de onde vêm os alimentos que fazem parte da minha dieta se eles forem a melhor escolha quando o preço e a qualidade são sopesados? Acho adorável que se insista no mesmo erro do passado: continuar a manter agricultores que não são os mais capazes, obrigando as pessoas a pagar preços mais elevados pelos alimentos. Afinal, onde está a justiça social que as esquerdas cansativamente proclamam (e um verde tem que ser de esquerda)? Só outra pergunta para perceber este conceito re-emergente da "soberania alimentar": se não temos capacidade para produzir todos os alimentos que entram na nossa dieta alimentar, como podemos chegar à "soberania alimentar"? Onde vamos produzir papaias? Mudamos o clima e os solos por decreto?

Os verdes dão-nos a provar um atributo que costuma andar de braço dado com a direita mais caceteira: o chauvinismo, a exaltação do que é nacional é bom. Alguns especialistas apontam para as fronteiras voláteis entre "esquerda" e "direita". Aqui está outra prova da volatilidade: um (digo eu) anti-valor associado à "direita" a colar-se em alguém que milita na "esquerda". Dessa distracção ainda sobra a defesa de quem vive em relativa abastança (os proprietários rurais) em detrimento dos pobres que são obrigados a pagar caro, muito caro, os alimentos que ingerem. A menos que os verdes queiram acabar com o latifúndio e estejam encantados com a ideia defendida em tempos pelo novo líder parlamentar da extrema-esquerda chique – as hortas nas cidades. Nessa altura, por favor, expliquem ao povo se os alimentos vindos das hortas citadinas têm qualidade ambiental. Sinais dos tempos. Ou da distracção de quem patrocina causas tão convenientes.

Tenho a impressão que estes verdes estão muito verdes.

2 comentários:

Milu disse...

Desta vez também concordo consigo, porque nem sempre isso acontece, apesar de gostar de o ler. Ainda há poucos dias ouvi de relance na televisão, um produtor de leite, se não estou em erro, a fazer queixinhas e a querer convencer os portugueses para comprarem leite nacional, porque isto e porque aquilo. É tudo muito bonito e não me custa nada concordar mas acontece que eu tenho um orçamento muito limitado, sou, portanto, obrigada a recorrer a produtos mais baratos, venham eles de onde vierem, se até forem portugueses melhor, mas não sou tola ao ponto de pagar mais caro para proteger os interesses de outrem. Os agricultores que evoluam, vejam o que se faz lá fora e tratem de seguir esses bons exemplos, desde que seja para bem tudo é permitido.

PVM disse...

Cara Milu:
Muito obrigado pelos seus comentários. Saiba que estou sempre aberto às suas discordâncias!
O que narrou é um dos problemas recorrentes dos agricultores: escorregam com facilidade para o sentimentalismo, apelando ao "bom coração" dos seus clientes. O exemplo dos produtores de leite é sintomático. Fazem grandes encenações em que a constante é a vitimização, deitando à rua litros e litros de leite. Só para chocar as pessoas e levá-las a preferir leite nacional, nem que seja mais caro.
Eu prefiro ser solidário com a minha carteira.