Sedução pelo bem-estar, apenas, uma atracção pelos bens materiais que é impossível de rebater? Ah, nem os ideais, os febris ideais da juventude, sobram de pé. Rendidos diante das maravilhas do materialismo. Seguidores do consumismo outrora diabolizado. Tinham razão: o vil metal é mesmo aviltante. Sabem-no por experiência própria estes revolucionários de tempos idos.
A burguesia é uma condição inata aos que conseguiram singrar e hoje têm proventos razoáveis. E é a aspiração dos mais jovens, ainda nos primeiros passos profissionais, ainda muito trémulos, sem saberem se o futuro lhes vai sorrir. Por enquanto, ainda bisonhos, tecem-se nos sonhos em que desfilam muitas aspirações de ordem material. Porventura, este é um retrato em que todos nos revemos – ora no presente em que nos debatemos, ora no passado de que fomos testemunhas vivas.
Por exemplo: por que teimo em tentar a sorte no jogo da Santa Casa da Misericórdia que promete a miragem de uns fartos milhões de euros no primeiro prémio quando se acumulam jokers de semana para semana? A resposta só pode ser uma: há sonhos por cumprir. Inevitavelmente, sonhos materiais. Não vou ao ponto de acreditar em líricos retratos tangentes à historieta de "um amor e uma cabana", ou de escorregar para uma ingenuidade que não é deste tempo se aderisse a uma monástica forma de vida desprendida das virtudes dos bens materiais. Contudo, teimar na mirífica sorte ao jogo (nos míseros euros semanais que salpicam de distante esperança a tentativa de marcar encontro com a sorte), não é a confissão da entrega a uma burguesa forma de vida?
Não sei: é como se estivesse diante de uma daquelas encruzilhadas sem sinais que identificam os destinos a que levam as várias estradas que dali saem para lugares diferentes. É tão fácil ser espectador da futilidade aburguesada que se nota nos sinais que exteriorizam uma certa forma de viver dos outros. Se ao menos fosse possível sairmos de nós e sermos espectadores exteriores de nós mesmos, talvez torcêssemos menos o nariz aos tiques aburguesados dos outros que em nós semeiam alguma repugnância. No fim de contas, esbarramos no mesmo dilema: as teorias que se edificam, muito belas e muito bem conseguidas, desmoronam-se quando as pomos em prática só nos outros. A incapacidade para em nós reproduzir as teorias é a dolorosa sentença de incoerência que as desfaz em nada. Reserva-se-lhes o único lugar merecedor: não teoria, mas um espartilho que, estávamos convencidos, era uma teoria tão à prova de bala.
E, contudo, as contradições não deixam de esbarrar com estrépito, como se fossem nuvens de cargas eléctricas opostas que, em rota de colisão, produzem feérica trovoada. Há trejeitos burgueses que soam nauseabundos. Talvez sem dar conta – porque o espelho de nós mesmos não é perene – também deslizo para os mesmos trejeitos que nos outros causam náuseas. É esta burguesia esquizofrénica, um doentio aburguesar, que atormenta. Pelo mar encapelado de contradições internas que desfazem em nada as teorizações que julgávamos elaboradas. E porque parece que vivemos aprisionados num mundo de dicotomias, como se houvesse apenas preto e branco, isto e o seu contrário, as janelas todas encerradas a formas diferentes de encarar as coisas. Se tudo for assim tão bipolar, como se não houvesse um largo terreiro a separar as duas extremidades – e talvez seja esse largo terreiro um infindável mar de oportunidades por descobrir – o que é o contrário da viciosa burguesia? Sermos burgueses é a prisão pessoal onde se encerra a nossa futilidade. Mas, e depois, estamos preparados para não sair de um convento e dos sacrifícios auto-impostos? Estamos preparados para uma existência toda espiritual e desligada dos vícios materiais?
Parece que a imperturbável insatisfação de tudo é a água fervente que escalda a carne que somos. Nunca estamos contentes com o que temos?
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