4.12.09

Ele há coisas do diabo: o Machado fez uma lipoaspiração e caiu em coma



A ditadura da estética. Agiganta-se, de mão dada com a modernidade que avança com o tempo e a tecnologia que cavalga em cada manhã que desponta. Dir-se-ia que somos cada vez mais apenas o papel de embrulho que o nosso corpo é. Diríamos, se fôssemos todos de um lirismo desarmante, que só interessa cuidar do aspecto exterior. Por ser um espelho do que buscamos nos outros: a sua exterioridade, o fino verniz que esconde o resto, uma sombria devastação do nada que habita na imensa maioria de nós. Nesta altura, descerrava-se a lápide com o obituário das cirurgias estéticas. Por serem penhores da batota que transforma os corpos em santuários de artificialidade, talvez o retrato fiel de quem se mete nesses corpos transformados.

Não quero exibir, outra vez, o pretensiosismo de um direito à diferença, como se tivesse apenas um prazer contestatário e gratuito de dissidir. Nem quero as alcáçovas da sobranceria por mostrar que não pertenço à imensa maioria, nem me considero acantonado no rebanho dos líricos. Descontando: não consigo dar para o peditório muito moralista que se assanha contra a doença da modernidade que é colocar a afoita tecnologia ao serviço de corpos que se transformam pelos bisturis de especialistas (e charlatães, a acreditar na advertência da ordem dos médicos).

Fez-se notícia porque uma figura pública se deitou na marquesa para uma lipoaspiração e, uns dias mais tarde, uma infecção generalizada atirou-o para coma. Não se deseja o mal a ninguém – de dedo em riste, moralistas de serviço já adivinham o resto do raciocínio: eu só digo que incidentes pós-operatórios destes devem acontecer ocasionalmente com figuras públicas. O mercado fica mais transparente. Ficamos conscientes dos riscos, da probabilidade da sua ocorrência. Não vamos ao engano para a sala de operações. Nem ficamos admirados se houver complicações que nos atirem para um estado semi-vegetativo. Era o que se passava se estas coisas só acontecessem a pessoas anónimas. Os problemas e os riscos também não saíam do anonimato.

De regresso à recusa do moralismo que povoa a reprovação das cirurgias estéticas. Somos todos catedráticos quando mandamos palpites sobre a vida dos outros. Que elevada proficiência de análise quando peroramos sobre os tropeções dos outros. Que mania de julgar os outros pelo que fazem, ou dizem, ou são, sempre que tudo isso remete às muito individuais opções que só pertencem à esfera íntima de cada um. Eu fazia uma operação estética? Não. E não é por ser dispendioso e encontrar outras utilidades mais compensadoras para o meu dinheiro. É porque estou bem dentro do corpo que trago. Admito que haja gente, muita gente, que se sente terrivelmente desconfortável dentro dos seus corpos. E se são inventados medicamentos para mascarar sintomas sem curar doenças, é porque a tecnologia que cavalga nas manhãs que despontam também é serviçal do hedonismo dominante. Por maioria de razão, por que não podem as pessoas retocar o corpo se as plásticas caucionam as pazes com os corpos desajustados?

Está na moda (ou na contra-moda, depende da perspectiva) desaprovar as cirurgias plásticas por serem coisas vãs. Vejo-os, nesta altura, ao saberem do que aconteceu a Manuel Machado (um treinador de futebol), esfregando as mãos de contentamento e debitando a sentença certeira que se socorre do lugar-comum: "quem anda à chuva, molha-se". Eu digo que isso é tão certo quanto estes empenhados moralistas só saírem à rua em dias soalheiros.

Esses dogmas ajuízam as modificações estéticas dos corpos como uma batota que contraria a natureza. Este é o mas que daqui atiro: a história da humanidade não é uma constante peleja para domar as forças da natureza? As doenças que deixaram de ser mortais; os medicamentos que suavizam sofrimento; a esperança de vida que se alonga; a imensa dignidade da menor mortalidade infantil; podíamos mudar a agulha: as barragens que domesticam rios selvagens; para atalhar, a parafernália de invenções que tornam a vida mais fácil, com mais bem-estar, mais hedonista. Tudo, mas tudo, é a emergência dos segredos que a humanidade conquista à natureza. Que perde o seu virginal estatuto.

Fazer retoques na estética do corpo não é batota. É uma necessidade para quem a sente.

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