Faz parte do imaginário da quadra: um microfone estendido diante de populares anónimos, convidados a formular os desejos para o natal e para um novo ano que se aproxima. As pessoas respondem, com préstimo e generosidade: ora desejam saúde (para cada um e para todos, imagina-se), ora anseiam pela paz sempre adiada. Enterneço-me enquanto espectador deste voluntarismo tão ingénuo.
Os poetas apregoam que os sonhos são o sal da existência. Alguém pode ser acusado por desfiar desejos que, à partida, no seu próprio íntimo, sabe serem objectivos impossíveis? É da natureza humana, a ambição. Se nos demitirmos das metas ambiciosas, arrastamo-nos numa existência vegetativa. Daí que nestas alturas de balanços (o fim do ano é a melhor altura para acertar contas com o que ficou para trás) um laivo de optimismo, um laivo que seja, perfume o exercício prospectivo.
O ingénuo voluntarismo dos anónimos populares é isso mesmo: uma manifestação de vontade que prima pela ingenuidade. Pode dar-se o caso de as pessoas abordadas pelos repórteres de rua serem apanhadas de surpresa quando são interrogadas. Com a pergunta disparada de chofre, nem sequer pensaram no assunto. As primeiras palavras que descem à boca coincidem com a reacção espontânea, com os votos vulgares que se repetem ano após ano – e que todos os anos se desfazem em pó quando, na hora do acerto de contas com o ano dobrado, as metas se repetiram miragens.
As pessoas desejam-se, umas às outras, saúde. Voto inconsequente. Não acontece a existência ser uma roleta russa que a uns distribui saúde de ferro e a outros doenças mais ou menos pungentes? Não vale a pena dar o braço a torcer e fazer coro com as pitonisas de uma vida asséptica que não se cansam de avisar que hábitos desregrados trazem consequências desagradáveis, dolorosas, por vezes fatais. Quem não conhece gente com hábitos de vida irrepreensíveis que foi assaltada pelos caprichos da roleta russa? Como a saúde pertence ao domínio do aleatório, desejar "saúde para todos" é uma forma envergonhada de ambicionar para si próprio um ano longe de hospitais e de médicos. Enquanto, atrás das costas, cruza os dedos num ritual supersticioso.
As pessoas desejam, à humanidade em geral, paz. Só o desconhecimento antropológico da espécie as pode conduzir a semelhante voto. A história da humanidade está repleta de conflitos, mais ou menos sangrentos, que são a negação da paz ambicionada. Para que não haja equívocos: não sou nenhum falcão enamorado por jogos de guerra, como acontece com os militares acantonados na caserna, aqueles militares de baioneta enferrujada mergulhados numa tremenda depressão porque lhes faz falta a acção em "teatro de guerra", o cheiro a pólvora misturado com o odor nauseabundo do sangue e de corpos que jazem derrotados pela absurda guerra. A cada guerra que passa, um lamento, um pungente lamento. E o registo da estupidificação da espécie, teimosamente entretida com a sua antropofagia bélica.
O que era ideal? Que não houvesse guerras. Todavia, o que se deseja é impraticável – e com uma frequência tamanha que isso se converte em regra, desmonta os ideais em nada. Quem insistir em projectar um futuro risonho para o planeta, um cenário aliviado de guerras e guerrinhas, desconhece a natureza da espécie. Ambiciona o desejável que, contudo, é de uma impossibilidade atroz. É nestas alturas que as dores dos desejos impossíveis são lancinantes. Ou nem o chegam a ser por inconsciência de quem formula votos tão belos como insensatos.
Estes desejos que proclamam, nas intenções, um ano melhor do que o ano senescente, são uma de inutilidade pegada. Como se houvesse esta compartimentação da existência fervida na artificialidade dos calendários que se sucedem. Se entendessem que a vida se repete dia após dia, as decepções não caldeavam a diária amargura. Como os dias se repetem sem o espartilho dos calendários, nem a insana cabalística dos anos, talvez não formular votos seja o melhor método. Sobretudo dos votos tangidos pela vulgaridade, os votos impossíveis. De uma impossibilidade além de qualquer utopia.
1 comentário:
Este post fez-me lembrar uma situação que comigo vem acontecendo ao longo das últimas passagens de ano. Com a aproximação de um ano novo, dou por mim a fazer promessas de alterar a minha postura no intuito de melhorar como pessoa. Não faço votos nem desejo mais
que não seja o meu aperfeiçoamento como ser humano: esforçar-me para ser mais tolerante para com as fraquezas do meu semelhante, esforçar-me para não fazer juízos precipitados, esforçar-me para aceitar as diferenças, enfim, há em mim, um desejo profundo em tornar-me uma pessoa justa, é isto mesmo que eu tanto gostava de conseguir ser - justa. Todavia, é com muito sentimento de frustração que constato o meu falhanço nos meus nobres propósitos logo no primeiro dia do ano, afinal, o mais emblemático, porque primeiro de tantos! Este ano tem sido para mim um ano de excepção porque deixei de me preocupar com coisas que não me levam a lado nenhum e, prosseguindo na mesma tónica, também este ano não vou querer saber de transformações drásticas e profundas no meu carácter. Já não desejo prodígios.
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