29.12.09

Agricultores virtuais?


É da natureza humana, a faceta lúdica. Somos jogadores natos. Há quem perca a cabeça – e o património – com apostas viciantes que jogam contra as escassas probabilidades de sair triunfante no jogo. E há outros jogos mais saudáveis porque não estiolam o património de quem por eles se enamora.

Quando éramos jovens dependíamos dos flippers. Depois vieram as primeiras consolas rudimentares (a ZX Spectrum), que empancavam a toda a hora para desespero de quem se queria divertir com os pueris joguinhos. Ficámos adultos e a tecnologia cavalgou num trote acelerado. Descobrimos computadores pessoais, consolas mais sofisticadas, processadores potentes e velozes, jogos cada vez mais apetecíveis, com imagens que se aproximam da realidade. Com o advento da internet até passámos a jogar à distância, os adversários porventura anónimos num sítio qualquer que desconhecemos. Soube há dias que a indústria dos jogos para consolas e computadores vale uma fortuna. Sintomático.

O uso do plural ali atrás é uma figura de estilo. Só momentâneos arroubos com estes jogos, pois nunca tive paciência para gastar tempo com eles. Para começo de conversa: os vícios dos outros são-me assunto totalmente estranho. Gastamos o tempo como bem nos aprouver; ninguém, a não ser o próprio, é senhor do seu tempo e soberano em como o vai despender. No máximo, cada um de nós manifesta, no seu íntimo, estranheza pelos vícios dos outros. Sobretudo se não houver mínima identificação com o que os leva a cair no estado de dependência.

Está na moda um jogo em que os jogadores fazem as vezes de agricultores virtuais. Já esteve na moda um outro jogo de realidade virtual em que quem nele embarcasse era convidado a um fútil exercício de esquizofrenia, desmultiplicando-se em personalidades paralelas, tantas as que conseguisse criar e manter. Era uma espécie de Fernando Pessoa e heterónimos exportados para a realidade virtual. O modismo do momento para quem aderiu ao Facebook é ser proprietário fundiário e camponês ao mesmo tempo. No fundo, uma maneira diferente da tal esquizofrenia de personalidades em que a realidade virtual parece fértil. Quem se propuser a ser proprietário fundiário herda, por milagre, uma quinta. Depois tem que a manter – e é aí que o empresário agrícola se converte em camponês de si mesmo.

Noto o passadismo deste jogo. Quando se pensava que o século XXI era o receptáculo da pós-modernidade (há até quem invoque a "pós pós-modernidade"…), as delícias da tecnologia colocaram-se ao serviço de uma tradição de antanho. Foi lá atrás, muito lá atrás no tempo, quando o conhecimento científico e a tecnologia eram rudimentares, que a agricultura teve o seu apogeu. Agora que estamos na era da "pós pós-modernidade", a tecnologia – que em teoria daria mais um golpe nas ancestrais tradições da agricultura – faz a ponte com o anacronismo. O mal pode ser meu, que tenho a mania dos exageros de análise: pode ser por genética antítese com a agricultura, mas é-me dado a ver que a agricultura tem os dias contados. Já sei que me vão interrogar: e sem a agricultura, o que comemos? Até me podem apontar o dedo argumentando que a agricultura é imprescindível para manter a paisagem rural, o contraponto da mancha urbana que se estende com a passagem do tempo e com a sedução das pessoas que se acotovelam nas cidades.

Os teólogos da nova ruralidade argumentam que é no campo que reside a qualidade de vida. Assustados com a vida apressada das cidades, onde o ar é irrespirável e as pessoas se tratam na indiferença do anonimato recíproco, querem construir um novo futuro através do regresso ao passado. Exilam-se no campo, onde se deliciam com o bucolismo da paisagem não composta por betão armado ao alto. Refugiam-se no estado da natureza em que a ruralidade ainda é pródiga.

O jogo que convida os jogadores a serem agricultores virtuais é o berço desta ruralidade pós-moderna? Talvez a resposta esteja no seu próprio enunciado: não passam de agricultores virtuais. Virtuais. Quantos estariam dispostos a mergulhar na vida árdua de quem cultiva (a sério, não no computador) legumes, frutos e cereais? E, no fundo, um jogo não é isto mesmo – a simulação, e só a simulação, da realidade?

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