25.12.09

O natal impugnado (conto natalício tardio)



Contava-se às crianças, às sucessivas gerações extasiadas com a aproximação do natal: o natal é imorredoiro. E as crianças enfeitavam-se de ilusões. Presas a um alucinante conto do vigário, convencidas, tão inocentes, de fábulas que desfiavam as leis da física. É que nem o pai natal é personagem singular – a menos que também as convencessem que o envelhecido, barbudo Nicolau tem o dom da ubiquidade e uma energia juvenil – nem as renas são animais com brevet de voo.

Mas o natal repetia-se todos os anos, sempre na mesma data por honra às convenções. Enquanto as criancinhas andavam o vinte e quatro de Dezembro num frémito impossível de travar, os mais velhos predispunham-se para o banquete. Os infantes entregues à febre imparável, aquecida pelo relógio que naquele dia parecia demorar-se na sua marcha – e só podia ser de propósito, a preguiça dos ponteiros. Os mais velhos, há muito tempo desfeitas ilusões prodigiosas, nos preparativos para o alambazar tradicional. E um punhado de crentes fixava o natal pelo significado religioso, a imperativa missa do galo marcada para a meia-noite em ponto, um digestivo para os exageros da gula.

Afinal o natal haveria de não ser imorredoiro. Num certo ano, as trevas abateram-se sobre o calendário. Como um tremendo apagão colectivo. Todos anoiteceram a vinte de três de Dezembro. Quando acordaram, nem deram conta que a folha do calendário havia sido mudada, por mistério, para o vigésimo sexto dia do mês. Sem danos para a felicidade dos juvenis. Nem estragos nas vísceras dos mais velhos, noutros anos abrasadas pelos exageros gastronómicos da quadra e pelo exagero do garfo. Nem sequer inquietação para os que cultivam o lado religioso, tão habituados a frequentar missas com assiduidade. Não chegou a haver um único levantamento popular.

Os economistas – e o governo – dariam conta da diferença. Os primeiros, anotando a quebra das vendas, pois afinal as trevas de quarenta e oito horas haviam sido meticulosamente instiladas sem que ninguém desse conta da dispensa das compras natalícias. O governo lamentava um Dezembro anómalo pela escassez de impostos cobrados devido à míngua consumista. Mas era uma força superior, inexplicável, uma força de que não se conhecia origem. Estranhamente, tirando os muito pedagógicos avisos dos economistas e as lágrimas oportunas carpidas pelo governo, o salto no calendário não foi por ninguém lamentado. Era só uma experiência. Para testar as gentes, a sua reacção perante a provisória diluição do natal.

Pela primeira vez, havia mesmo pensamento único. Não se penduraram instalações luminosas nas ruas (e os ecologistas aplaudiram). Não se montaram árvores de natal nas casas. Não houve a corrida ao bacalhau, no necessário encarecimento que não faz esquecer os mecanismos de mercado (os ecologistas também aplaudiram – e a dobrar). Não houve exílio maciço dentro de centros comerciais na demencial corrida às prendas que ficam sempre tardias. Nem reportagens feitas na Lapónia cheia de neve, com entrevistas a filisteus que se fazem passar por pai natal. As escolas tiveram que substituir as intermináveis festas de natal por outras actividades à escolha da criatividade de quem as dirige. Sem preparativos para festas natalícias, nem contos que antecipavam a quadra, ou aquelas músicas que emprenham os ouvidos sempre a partir de fins de Novembro, num convite à alienação estética. O coro de Santo Amaro de Oeiras ficou recolhido nos bastidores.

O natal tinha coalhado. E – surpresa! – ao vigésimo sexto dia de Dezembro, o planeta acordou tão feliz (ou infeliz, depende da perspectiva) como dantes. Soubera-se nesse dia: o natal tinha sido impugnado. Ainda se estava para descobrir quem o tinha banido do calendário e que juiz tão poderoso tinha dado seguimento à impugnação. Ou, melhor dizendo, quem tinha endossado dois dias de calendário às trevas, ditando uma inexplicável letargia colectiva, um longo sono de quarenta e oito horas.

Nesse ano, ao vigésimo sexto dia de Dezembro, o natal só por anamnese.

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