Muita gente escandalizada porque o golfista mais famoso do mundo tinha (ou tem – e o que é que isso interessa?) um harém. Até ouvi um senhor, por sinal com ar pouco recomendável, sentenciar que as imensas actividades lascivas do campeão são inadmissíveis porque ele é um homem de família, casado e com filhos.
Diria que os Estados Unidos têm uma tendência inata para o moralismo. E que o moralismo tem as suas próprias mordaças e alçapões muito perigosos. Todavia, os palpites sobre as questiúnculas conjugais de Tiger Woods preenchem páginas de jornais pelo mundo fora; o mal é global, já que a globalização está tão na moda. Vi ontem uma reportagem que dava conta da proliferação de talk shows e programas onde são chamados prestigiados opinadores para se pronunciarem sobre as perdições hormonais do golfista. Do que fui lendo e ouvindo, o tom geral é de reprovação do adultério sistemático cometido por Woods. Há muita gente de dedo em riste apontado à sua cara, como se este clamor popular fosse uma reprimenda colectiva. Logo Tiger Woods, em exemplo, a deixar-se perder por uns rabos de saia.
Talvez se diga que as figuras públicas, por o serem, têm a vida privada exposta ao escrutínio dos outros. Àqueles que escorregarem para esta condescendência aterradora, só isto: uma vida privada é uma vida privada, seja de uma "estrela" ou de um anónimo; e convinha aprenderem o significado do verbo "devassar". Se tanto se apregoa que "entre marido e mulher não se mete a colher" (imagino que lá nos States deve haver uma variante do adágio), deixamos de ser coerentes com o ditado se formos rudes em relação às facadinhas no matrimónio cometidas por alguém, só porque esse alguém é uma figura pública e – este é o pior dos pecados de Tiger Woods – é um modelo de virtudes. Ora, ao molhar sistematicamente o pincel em mulheres diferentes da consorte, o tigre terá defraudado a confiança que as gentes nele depositavam. Um modelo deve sempre dar o exemplo. Um "modelo social" que escapa frequentemente para as camas das amantes não está a dar um exemplo de decência. A solução é óbvia: crucifique-se em público o já não "modelo social".
É curioso: acabo por escrever sobre o adultério do campeão de golfe, afinal fazendo o contrário do que apregoo. Em meu favor, alguma condescendência, porém. O que seria um "não assunto" tornou-se numa procissão em que muitas virgens pudicas aproveitam para exibir um moralismo enfadonho. Só se tornou assunto por causa das intromissões na esfera privada de Tiger Woods. O que me traz à segunda incoerência: eu, que me recuso a aceitar qualquer moralismo quando se impõe de fora para dentro, acabo por me enredar num contra-moralismo que me interrogo se não é também um moralismo.
Enterneço-me a ver o cortejo de sumidades do moralismo alheio. Tão seguras das suas sentenças. É nestas alturas que me apetecia ser uma formiga e ter um mágico dom da ubiquidade. Só para saber se estes juízes do adultério alheio nunca deram a sua pessoal facadinha no matrimónio. Ou se não se trata de gente assoberbada com a possibilidade de sentir crescer na testa uma vistosa cornadura. Ah, como é encantador ser-se penhor da moral dos outros, sobretudo quando a deles e delas possa ser um antro pouco recomendável para servir como paradigma do que quer que seja. Não que eu tenha algo a ver com isso; só me incomoda que a avaliação dos outros (o que nem devia acontecer) seja feita por padrões muito mais exigentes do que a avaliação que os sacerdotes da moralidade fazem de si próprios.
Se não é a "censura social" (outra doença contemporânea) que se abate sobre Tiger Woods, é o escárnio. Folhear páginas dos jornais e ler insinuações de que Woods tem testosterona a mais sugere-me uma de duas possibilidades: ou se trata do mesmo moralismo numa versão encapotada, ou da mais pura das invejas.
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